CAPÍTULO SEIS - ENTRADAS E SAÍDAS

Tiveram um Inverno rigoroso, farto de frio e chuvas, muitas inundações, muitas ausências de Alberto que só aparecía à mesa do pequeno-almoço . Mostrava-se mais preocupado para além do normal e quando vieram instalar o telefone no escritório passou a fazer daquele cómodo lugar de refeição também, quando ficava em casa a trabalhar.
Vinham muitos homens visitá-lo, por vezes acompanhados de uma ou outra secretária, deselegantes, feias mesmo, mulheres atacarradas nos sapatos rasos. Maria da Luz vía passá-las e por vezes quase desejava ser uma delas, andar por aí, saír, ouvir falar. Nunca lhes dirigiu a palavra tentava não se aproximar da porta do escritório conforme as ordens do marido. Nessas alturas até a governanta estava proibida de entrar.
Em Janeiro e logo depois do primeiro aniversário de Rosmaninho, Alberto passou a andar de carro com motorista. Ficava encostado ao carro, à espera, numa prontidão servil de abrir a porta ao Doutor e arrancar silencioso. Maria da Luz espreitava-o entre os cortinados, observava-lhe as mãos, a farda negra e o boné de pala dura. De um dia para o outro deixou a farda, paramentara-se de fato negro e camisa branca como tantos que entravam na sua casa, o chapéu de feltro com faixa preta a altear-lhe o tamanho.
No mês seguinte dispensaram os serviços da ama de leite que chorosa, abraçou muito Rosmaninho e lhe chamou meu menino. Foi-se com o filho e nunca mais souberam dela, o motorista levou-a à estação de Sta Apolónia desaparecendo como o fumo libertado pelo apito da partida.
Foi nessa altura que D.Lídia teve uma gripe que a atirou à cama. Chamaram o médico, delirava, chamava pelo Doutor, tentava despir-se.
Maria da Luz nessa noite não fechou a porta do seu quarto.

CAPÍTULO CINCO - O JANTAR

Maria da Luz quis ocupar-se pessoalmente da organização da mesa e da distribuição dos lugares: intercalar os convivas obedecía a que se conhecesse a sua posição social e ainda dispôr o mais falador junto de um outro mais calado, cavalheiro e senhora, não descuidando as distâncias entre esposos.
Mas quando chegou a altura de escolher o menu Maria da Luz hesitou entre um cardápio francês e as recomendações do marido para a austeridade que o seu cargo governamental impunha e o chefe do conselho exemplificava nas suas parcas refeições. Ficou nervosa, com medo e D.Lídia acabou por ser quem efectivamente decidiu a ementa.
O jantar correu calmo e sem sobressaltos, após o café os homens recolheram-se ao escritório e de porta fechada só se sentíam algumas gargalhadas abafadas pelo peso das tapeçarias.
As mulheres ficaram na sala de estar a discutir pontos de crochet e as escolas onde haveríam de matricular os filhos. Maria da Luz recebeu muitos ensinamentos, muitos conselhos, enfastiou-se, apetecía-lhe um cigarro mas o odor não permitido apenas a levou a descascar o verniz muito vermelho e a esborratar o baton.
De vez em quando a governanta surgía, perguntava se queríam alguma coisa. Depois seguía até ao escritório, batía ao de leve na porta encerada, entrava, deambulava por entre as pernas traçadas dos homens, cuidava dos cinzeiros, arejava as portadas envidraçadas e servía mais um conhaque a um e outro.
O serão passou agradável, partiram, Maria da Luz escondeu-se no quarto e rodou a chave para não ser incomodada no seu cigarro, Alberto voltou ao escritório e desejou boa noite a D.Lídia.
Já com a casa apagada fez em bicos dos pés o caminho até ao quarto da ama, entrou devagar e deitou-lhe as mãos aos seios grandes. A ama estremunhada soergueu-se num cotovelo.
- Ah, Doutor, é tarde...
- Shhhh... deixa-te estar...
Levantou-lhe a camisa de noite fechada até ao pescoço, tacteou-lhe no escuro os mamilos entre os dedos e depois abocanhou-os, chupando sofrego e gemendo baixinho. Desapertou-se e procurou a boca da ama de leite, empurrando-lhe a cabeça a intervalos regulares contra o seu corpo.
D. Lídia, agachada espreitava pela fechadura e quando ouviu um som cavo entendeu que o Doutor Alberto tinha atingido o que quería. Saíu em bicos de pés e a sorrir.

CAPÍTULO QUATRO - ORDEM

- Eu não preciso dos serviços dela. Estou bem, capaz, eu tomo conta da casa, como sempre o fiz.
- Como sempre?!
- Sim, como sempre. Passei um tempo indisposta mas já passou.
- Não me parece. Além disso ela tem-se mostrado de uma competência extrema, nada falta, nada falha, está sempre atenta e até me lembra da minha pasta.
- Claro, outra coisa não sería de esperar...
- Que quer isso dizer?
- Ora, tu sabes bem!
- Não sei não.
- Sabes sim. Mas não é isso que está em causa. Não precisamos mais dela, vou despedi-la.
- De forma alguma! Ela fica, isso é ponto assente!
- Mas eu não gosto dela!
- Nem tens que gostar! Tu és a senhora da casa e D.Lídia a governanta, tu dás as ordens ela manda executar. É assim que funciona, estamos entendidos?!
- Ela detesta-me, Alberto!!!
- Deixa-te disso... e agora tenho que trabalhar... por favor...
- Tu não estás a perceber! Ela quer-te, por isso me detesta! Não a quero cá em casa, faz-me mal e se tu não a mandares embora mando eu!
- Esta conversa chegou ao fim Maria da Luz. Sai, preciso de sossego!
- Eu saio mas tens que me prometer...
- Prometer?! O quê? Quando voltas a abrir a porta do nosso quarto? Ou terei que te envergonhar e lembrar-te as obrigações de esposa? E as da dona desta casa? Mal ligas para o teu filho e agora queres que corra com a governanta! E acabou! Sai! Sai!
- É esta a tua última palavra? Magoas-me, ofendes-me...
- É uma ordem. Assunto encerrado.

CAPÍTULO TRÊS - O RESGUARDO

Maria da Luz entrou num resguardo prolongado, perdida no quarto que afastou Alberto da sua cama.
Rosmaninho foi entregue aos cuidados de uma ama de leite, mulher forte e rosada que trouxeram das Beiras e da casa as tarefas foram entregues a D.Lídia, uma governanta que se vestía de cinzento todos os dias do ano e usava uma pregadeira em forma de cruz, olhar penetrante, boca fina e óculos esverdeados.
Alberto cada vez passava mais tempo fora, as exigências do partido e o cargo recém promovido no governo obrigavam-no a serões frequentes, esquecido da casa e do filho que tanto quisera. Chegava pelo romper do dia com cheiro requentado de cigarros e o semblante triste, cansado e mudo, a pasta preta de pele muito encostada no sovaco que religiosamente guardava no cofre do escritório. Depois seguia para os cómodos destinados a visitas, deitava-se e passadas poucas horas aparecía lavado e de barba desfeita para o pequeno-almoço familiar na companhia de seus pais.
A ama trazía-lhe Rosmaninho, mostrava-o como estava gordo e bem tratado, Alberto sorría, passava-lhe um dedo ao de leve na bochecha macia e procurava a mão pequenina para esconder no aperto o dedo forte. Depois perdía-se nos seios fartos da ama de leite, perguntava-lhe pelo seu filho um pouco mais velho que Rosmaninho e a ama respondía estridente e com som de sh que com a graça de Deus tudo ía.
E Alberto ía, sempre, antes de voltar aos afazeres, espreitar Maria da Luz, encostar-lhe os lábios na testa, ajeitar-lhe a dobra do lençol, passar-lhe a mão no cabelo ondulado.
Maria da Luz dormía.
Mas quando ele saía e fechava a porta de mansinho ela abría muito os olhos e tentava chorar.
Os meses passaram e no inicio do Verão, Maria da Luz levantou-se e tomou assento à mesa do pequeno-almoço.

CAPÍTULO DOIS - PLANTAÇÕES E ROSMANINHO

Só em meados de Setembro se mudaram para a casa. Já toda apetrechada com os móveis mandados fazer sob encomenda no Norte mas com aquele cheiro de frio e humidade de quem nunca tinha sido habitada, a tinta ainda reluzente sem o calor das vidas a fazerem uso, ecos de paredes que não estão habituadas a partilhar.
Maria da Luz fizera finca-pé no jardim da entrada, nada de muito sério, mas pelo menos uns pés de roseira que perfumassem quando floridas num cumprimento de quem lhes passasse à porta e alguns canteiros de amores-perfeitos e ervilhas-de-cheiro. Sem isso não aceitava mudar-se.
O marido acedeu. E ainda mais quando soube que ela estava grávida. Desvelou-se em atenções e presentes, inquietações e vómitos, que estes chegaram-lhe mas a Maria da Luz nada.
Entraram na casa já ela barriguda, o padre de benzedura na mão, alguns amigos, uns quantos politicos do partido de fato completo e gravata preta.
Fez-se a festa de inauguração, baptizou-se a casa de AM: Alberto e Maria.
Em Janeiro nasceu o terceiro Alberto, do pai e do avô carregou o nome na cruz desenhada pela parteira à nascença dolorosa depois de vinte horas em trabalhos na cama do casal. Parto perigoso, a criança trazía um colar à volta do pescoço feito do cordão umbilical e que o deixara roxo nos primeiros minutos de vida.
A avó ao vê-lo sorriu e disse que havía de vingar, limpou-lhe o sangue e a massa branca, enfiou-lhe o indicador na boca e soprou-lhe às narinas.
- Vens roxinho como um rosmaninho! - exclamou.
Assentou-lhe duas palmadas com força nas nádegas e Alberto terceiro vagiu exibindo as gengivas.
Maria da Luz debilitada, tentou recostar-se e estendeu os braços para a sua cria.
Mas a empregada, de farda branca e negra esticou-lhe uma bandeja com um cálice de vinho do Porto.
O nome de rosmaninho ficou.

CAPÍTULO UM - A CASA DE PAPEL

Desenrolou os canudos de papel. O vento atirava-lhe as abas do casaco para trás e dificultava-lhe o assentar das folhas encaracoladas, chamou o mestre, a quatro mãos esticaram os planos pousando umas pedras nos extremos. Que faltava? Pouca coisa, agora era mais retirar entulho e algumas limpezas do resto dos materiais e depois podía fazer a mudança.
- Estas obras já se atrasaram mais de seis meses... não quero adiar mais nada, estamos entendidos? - e puxou o chapéu de feltro sobre a vista sem olhar a cara do mestre.
- Claro, Doutor! É como lhe disse, faltam só os homens levarem os restos. Com licença.
Ele ficou a ver o mestre de obras afastar-se, ligeiramente manco, uma queda de um telhado deixara-lhe a anca avariada. Depois olhou a casa, rosada, uma moldura salmão em redor das portadas de vidro e dos pilares do alpendre. Suspirou, sentiu-se subitamente cansado e infeliz. Durante anos sonhara com aquela casa, desenhara-a, aprimorara cada detalhe na companhia de Maria da Luz.
Finalmente a casa tinha-se transformado de papel em pedra, de uma fantasia em paredes sólidas e uma porta maciça de carvalho franqueava-lhe a entrada para uma luta conseguida.