tag:blogger.com,1999:blog-6156217535584202542024-02-20T10:31:29.134+00:00= A CASA de AM'ART =Escrever é poder amar-teSant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comBlogger40125tag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-50075991100368837072008-04-02T23:00:00.003+01:002008-06-07T07:22:15.367+01:00CAPÍTULO QUARENTA - DE VOLTA A CASA<div align="justify">Ao fim de pouco mais de três meses Alberto fechou a conta e a familia regressou à casa renovada.</div><div align="justify">Maria da Luz apenas tinha ido por uma vez ver o decurso das obras mas perante o jardim devassado não quisera lá voltar.</div><div align="justify">Agora era tempo de subir a escadaria que Alberto lhe prometera, mas o desânimo das suas rosas plantadas e escolhidas com Joaquim, a pregadeira achada de D.Lídia, condicionaram-lhe a plenitude do que podería sentir no regresso.</div><div align="justify">Depois, a alteração dos cómodos com o seu quarto no piso superior fazíam-na sentir num ambiente estranho, o cheiro de tintas ainda frescas retirara todo o passado olfactivo que tinha das suas coisas. Procurou o seu caderno, encontrou-o na cesta das lãs onde o tinha deixado, uma fina película de pó a conservá-lo, intocável.</div><div align="justify">Alberto deu-lhe carta branca para comprar novos cortinados, tapetes, o que ela quisesse.</div><div align="justify">Animou-se com a novidade.</div><div align="justify">- E o jardim?</div><div align="justify">- Que tem?</div><div align="justify">- Que tem?! Achas que aquilo é um jardim? É um terreno esburacado!</div><div align="justify">- Teremos que contratar um jardineiro.</div><div align="justify">- E o Joaquim?</div><div align="justify">- Ora! Vou lá eu saber o que é feito desse pobre diabo!</div><div align="justify">- Que queres dizer com isso?</div><div align="justify">- Que não vou estar à espera que ele apareça. Teremos que arranjar outro.</div><div align="justify">- Mas eu estava tão habituada ao Joaquim...</div><div align="justify">- Maria da Luz, esse Joaquim não é o único jardineiro do mundo! Que se passa?</div><div align="justify">- Nada, nada! Mas ele percebía das minhas rosas...</div><div align="justify">- E outro virá que também perceba. Deixa, não te rales, eu trato de arranjar um homem para cuidar do teu jardim.</div><div align="justify">- Quem?</div><div align="justify">- Sei lá quem! Tens cada uma Maria da Luz!</div><div align="justify">- Podías procurar o Joaquim...</div><div align="justify">- Mas que raio! Outra vez?! Que interesse é esse pelo Joaquim?</div><div align="justify">- Nenhum! Nenhum! </div><div align="justify">Maria da Luz sentiu o rosto a escaldar-se, quase teve medo de Alberto.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-23122591574594562852008-04-01T23:00:00.002+01:002008-06-07T07:00:22.962+01:00CAPÍTULO TRINTA E NOVE - O QUE DIZ O MAR<div align="justify">Alojaram-se num hotel com vista para a baía de Cascais. Maria da Luz ocupava o seu tempo entre bordados e o peitoril da varanda. Embevecía-se com o pôr-do-sol e deixava a imaginação fluír e arrastar-se como o astro, até se esconder na linha do horizonte e entrar na noite. Era quando ouvía Alberto chamá-la para dentro. Achava então, que despertava de um sonho lindo e que a sua realidade de esposa e mãe eram tão pouco perante a grandiosidade do mar a receber o final do dia.</div><div align="justify">Suspirava.</div><div align="justify">Enquanto se preparava para descerem para o restaurante, em frente ao espelho compondo o cabelo que ondulara pela aragem maritima, recordava o seu caderno e quanto fora leviana ao dispensar os seus versos simples, e até mesmo o seu diário.</div><div align="justify">Sentía saudades de casa, da segurança do seu quarto, dos seus cigarros enrolados em mão trémula quando o pensamento lhe escapava para outras latitudes.</div><div align="justify">Agora entendía-se.</div><div align="justify">Percebía em si o gosto da partida e o quanto desejava conhecer mundo. Imaginava-se de mão dada com Rosmaninho a bordo de um grande navio, o chapéu de abas largas com fita a condizer com o vestido vermelho de bolinhas brancas. Tudo a esvoaçar como uma imagem que de si mesma assistisse. Interrogava-se porque não vía os gémeos e o marido a seu lado nessa viagem.</div><div align="justify">Entristecía-se.</div><div align="justify">A vida que parecía invejável aos olhos dos outros era uma âncora na sua.</div><div align="justify">- Não fiques assim triste Maria da Luz. Daqui a nada voltaremos a AM'art e verás como está linda!</div><div align="justify">Mas Alberto não a sossegava, só ouvía as ondas do mar.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-39804072985633595332008-03-31T23:00:00.004+01:002008-05-20T06:36:44.884+01:00CAPÍTULO TRINTA E OITO - PENSAR, PENSAR<div align="justify">No dia seguinte, de malas feitas, encaixaram-se no carro, o motorista de prontidão.</div><div align="justify">Maria da Luz olhou AM'art: estava irreconhecível, a casa sem o telhado vermelho num dos lados assemelhava-se a uma boca escancarada e sem dentes e do jardim nada restava, tudo espezinhado e amontoado como ervas daninhas.</div><div align="justify">Sentiu um aperto no peito, lembrou-se do diário escondido no meio de fios de lã e linhas de bordar, esquecera-o como um pedaço de vida que se abandona por trazer memórias de tempos muito longínquos. Na malinha de mão carregava a pregadeira de D.Lídia, muitas perguntas e ainda mais conjecturas, não sossegara o raciocinio desde que Rosmaninho lhe entregara o achado.</div><div align="justify">Se o enfeite estava enterrado alguém o quisera esconder, isso era lógico no imediato.</div><div align="justify">Mas porquê?</div><div align="justify">E esta questão não deixava de a martelar, ainda tornava mais misterioso o desaparecimento da governanta.</div><div align="justify">Viu-a distintamente a desfilar pela casa naquele cinzento agoirento, a cruz pregada sobre o lado esquerdo a brilhar... o quanto a tinha em estima pois sempre a compunha como um tique.</div><div align="justify">Então não a podía ter perdido, não tinha sido um descuido. E se estava fundo na terra... </div><div align="justify">- Maria da Luz, vamos?</div><div align="justify">Ela olhou o marido.</div><div align="justify">E de repente atravessou-lhe o espirito que Alberto tería de alguma forma intervenção no desaparecimento daquela mulher que tanto odiava.</div><div align="justify">- Vamos, não fiques assim. Quando voltarmos será uma casa nova, vais ver! Linda!</div><div align="justify">Uma casa nova cheia de fantasmas velhos e perguntas a forrar as paredes, pensou Maria da Luz e entrou no carro, deu a mão a Rosmaninho.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-11222550781235811652008-03-30T23:00:00.002+01:002008-05-19T23:41:50.356+01:00CAPÍTULO TRINTA E SETE - A CRUZ<div align="justify">Maria da Luz tratou de Rosmaninho, a pedrada atirada por um dos irmãos tinha-o atingido em cheio, exibía um lenho esbeiçado que teimava em não parar de sangrar mas quando a mãe lhe mencionou o hospital para ser cosido, ele agarrou-lhe as mãos e entrou em pânico.</div><div align="justify">Maria da Luz assustou-se com a reacção do filho e não teve outro remédio senão prometer-lhe que não o levaría. Uniu como poude as duas metades da carne fina e aplicou-lhe um adesivo. Depois brincou com ele, enfaixou-lhe a cabeça numa ligadura muito branca que contrastava com o cabelo negro e chamou-lhe soldado ferido em batalha.</div><div align="justify">- Como é que tu foste arranjar um trabalho destes Rosmaninho?</div><div align="justify">- Foi o João e o Luís...</div><div align="justify">- Os manos? Mas como?</div><div align="justify">- Queríam bater-me...</div><div align="justify">- Mas porquê? Não quero zangas entre irmãos! Têm de fazer as pazes!</div><div align="justify">- Não quero Mã!</div><div align="justify">- Que é isso Rosmaninho?! São os manos!</div><div align="justify">- Mas eu não quero... eu achei uma coisa e eles queríam tirar...</div><div align="justify">- Que coisa? O que tu achaste foi uma pedrada, isso sim!</div><div align="justify">- Não. Foi isto...</div><div align="justify">Rosmaninho enfiou a mão na peúga, tirou devagar o punho pequenino, exibiu a palma com o achado.</div><div align="justify">Maria da Luz sentiu o ar a fugir-lhe.</div><div align="justify">- Onde encontraste isso?</div><div align="justify">- No canteiro das rosas vermelhas. Estava no fundo da terra, eu estava a fazer um buraco com os manos e depois achei...</div><div align="justify">- Dá à Mã, Rosmaninho, eu guardo o teu tesouro. Como te sentes?</div><div align="justify">- Tenho sono...</div><div align="justify">- Olha, vais tomar um comprimido e vais para a cama. Amanhã vamos para um hotel, um sitio bonito, com muitas novidades.</div><div align="justify">Maria da Luz deitou o filho, deixou-se ficar na penumbra do quarto, sentada à beira da cama, o troar lá fora de martelos e de gritos do pessoal das obras.</div><div align="justify">Levou a mão ao bolso da sua saia e tirou a pregadeira em forma de cruz que fora de D.Lídia.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-14607312172897713092008-03-29T23:00:00.002+00:002008-05-19T23:17:14.944+01:00CAPÍTULO TRINTA E SEIS - OBRAS<div align="justify">Na semana seguinte chegaram os operários liderados pelo mestre de obras, carregados de cordas, escadotes e demais ferramentas.</div><div align="justify">Alberto estava corado, sorridente, rolos de papel comprido entalados no sovaco, dava ordens, instruía de braço esticado o mestre que acenava com a cabeça.</div><div align="justify">Maria da Luz espreitava entre as cortinas da janela do seu quarto. Sentía uma contrariedade que não conseguía explicar, preocupava-se com os seus canteiros, recordava as tardes passadas na companhia de Joaquim a dispôr os pés de rosa, lembrou a capa de cartolina que escondía a fotografia do jardineiro.</div><div align="justify">Rosmaninho e os gémeos corríam lá fora, a novidade de tanta gente em acção dava-lhes uma liberdade de se comportarem como habitualmente não era permitido, pisavam as flores, empoleiravam-se nos primeiros degraus do escadote, imitavam os homens que víam a cuspir.</div><div align="justify">- Maria da Luz. Maria da Luz, não me ouves?</div><div align="justify">Ela virou-se, não se apercebera da entrada do marido.</div><div align="justify">- Vamos ter de ir para um hotel durante uns tempos.</div><div align="justify">- Um hotel? Deixar a minha casa?</div><div align="justify">- Tem de ser. Não é possível viver-se com este entulho e barulho.</div><div align="justify">- Mas... Alberto, e as crianças? Isto é mesmo necessário? Nós ajeitamo-nos...</div><div align="justify">- Claro que é necessário! Tens de falar com a criadagem, isso não são contas do meu rosário.</div><div align="justify">- Falar como?</div><div align="justify">- Ora, dispensá-los, mandá-los para casa durante uns tempos! Eles que vão lá à terrinha deles!</div><div align="justify">Ouviu-se o som de vidro a estilhaçar. Maria da Luz e Alberto acorreram ao jardim.</div><div align="justify">Rosmaninho chorava, as mãos na testa a sangrar. Os gémeos fugiram num grito de troça.</div><div align="justify">- Meu Deus! Que foi isto?!</div><div align="justify">Maria da Luz limpava a testa de Rosmaninho, beijava-lhe o cabelo, apertava-o contra si.</div><div align="justify">- Onde te dói? Caíste? Foi isso, Rosmaninho? Oh, meu querido!</div><div align="justify">- Deixa-te disso Maria da Luz! Uma cabeça partida é coisa de rapazes!</div><div align="justify">- Mas tu não vês Alberto?! Como ele sangra?</div><div align="justify">- Ora, uma coisa de nada! Anda cá rapaz!</div><div align="justify">Rosmaninho escapuliu-se para dentro de casa. Doía-lhe a testa, a cabeça toda, sentía-se tonto.</div><div align="justify">Mas os manos não lhe tinham conseguido tirar o que descobrira enterrado no jardim.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-77384190530511024632008-03-28T23:00:00.003+00:002008-05-11T08:19:22.268+01:00CAPÍTULO TRINTA E CINCO - A ESCADARIA<div align="justify">Com a Primavera a romper no jardim entre leques de cores e uma brisa adocicada os medos de Maria da Luz desanuviaram-se. Ficava maravilhada com a força da natureza a exalar o perfume das flores e os insectos numa dança incansável de volta do pólen.<br />Não voltara a escrever o seu diário, fazía-o mentalmente, tinha receio que alguém lhe apanhasse o caderno e pensava seriamente numa oportunidade para o lançar às chamas e acabar de vez com o rasto dos seus pensamentos.<br />- Em que pensas?<br />- Alberto, não te ouvi...<br />- Eu sei. Estive a apreciar-te. És linda, sabías?<br />Ela sorriu, ele abraçou-a pelas costas e pousou o queixo no ombro dela.<br />- Ando com umas ideias... Que me dizes de aumentar a casa?<br />- Aumentar?<br />- Sim, obras. Fazer um piso por cima deste, montar uma escadaria e fazer uma casa de dois andares.<br />- Uma escadaria? Como no cinema?<br />Alberto riu. Ela também.<br />- Uma escada que desse para o primeiro andar, para o nosso quarto, para o quarto dos rapazes, dos meus pais. Dar mais privacidade ao sitio onde se descansa.<br />- Hum... e donde veio essa idéia? Assim? Tão repentino?<br />- Não é repentino, sempre tive vontade de o fazer. Mas agora impõe-se, os rapazes estão crescidos e o quarto é pequeno demais para os três.<br />- E essas obras seríam para quando? És tu que vais fazer os desenhos?<br />- Os desenhos estão feitos e entregues ao mestre de obras. Para a semana devem começar.<br />Maria da Luz voltou-se, irada.<br />- Quando tencionavas pôr-me ao corrente? Quando aparecessem os pedreiros? Parece impossível! Eu não sou tua mulher!<br />- Maria da Luz! Era surpresa! Não estás contente?<br />- Não! Afinal para que sirvo eu? Abrir as pernas e dar-te filhos?<br />Alberto levou o braço atrás e deu-lhe uma bofetada.<br />- Comporte-se! Não se esqueça que tem o meu nome!<br />- Eu é que me comporto? E as senhoras com quem vais para os hotéis?<br />- O quê?<br />Maria da Luz fugiu do jardim, as lágrimas a arderem no rosto marcado pela mão de Alberto. Trancou-se no quarto, um choro convulsivo atirada em cima da cama, o punho a bater na colcha de cetim.<br />Rosmaninho entrou, pousou a sua mão pequenina na da mãe e acalmou a fúria aos poucos.<br /></div><p><br /></p>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-42681612500720721412008-03-27T23:00:00.002+00:002008-05-11T07:31:21.809+01:00CAPÍTULO TRINTA E QUATRO - O PAPÃO<div align="justify">Em meados de Fevereiro Alberto apareceu radiante no final do dia. Vinha de aspecto cansado e olheirento mas com uma disposição como há muito não apresentava.</div><div align="justify">- Pronto! Agora está tudo bem!</div><div align="justify">- O quê?</div><div align="justify">- Tudo, estamos sossegados, Maria da Luz!</div><div align="justify">- Não te entendo...</div><div align="justify">- Podemos dormir descansados!</div><div align="justify">- Continuo sem te conseguir perceber, Alberto. Passou-se alguma coisa?</div><div align="justify">- Hã... digamos que o papão se foi!</div><div align="justify">- O papão? Que história é essa?</div><div align="justify">- O papão acabou, morreu!</div><div align="justify">- Não te percebo, queres explicar o que se está a passar?</div><div align="justify">- Não quero que moas essa cabecinha, basta que acredites no que te digo.</div><div align="justify">- Detesto quando fazes de mim uma mulher estúpida!</div><div align="justify">- Ora! não é isso! Só não quero que te preocupes! Ainda mais quando há razões mais que suficientes para não te ralares! Tudo está bem, tudo está bem...</div><div align="justify">- Mas que razões, queres dizer? Falas mas não explicas do que falas e eu não sou parva Alberto! Sei muito mais do que imaginas!</div><div align="justify">- Que quer isso dizer, Maria da Luz?</div><div align="justify">Maria da Luz sentiu um calor a tingir-lhe o rosto, ficou sem saber que continuidade dar à conversa sem desvendar-lhe que tinha encontrado a fotografia de Joaquim, que tinha andado a mexer onde todos estavam proibidos de tocar.</div><div align="justify">- Nada, não quer dizer nada.</div><div align="justify">Um dos homens de fato negro entrou no escritório e Maria da Luz saíu.</div><div align="justify">Mas ficou rente à porta, a cabeça inclinada a tentar perceber o que se passava lá dentro, ouvía frases aos bocados, " deu luta, não havía meio de finar-se", "ela gritou, muito", "dois balázios, só para o caso", "hão-de encontrar o carro", "ficou tudo limpo, nem um pingo" e depois a gargalhada de Alberto interrompida por um ataque de tosse.</div><div align="justify">O homem de negro saíu, Maria da Luz afastou-se, sentiu medo, muito medo, tal como as crianças têm medo do papão.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-68207493953333591762008-03-26T23:00:00.002+00:002008-05-11T07:06:16.013+01:00CAPÍTULO TRINTA E TRÊS - RESSACAS<div align="justify">Nos dias que se seguiram Alberto voltou a ficar em casa.</div><div align="justify">Não se apercebeu que Maria da Luz estivera no escritório nem que a gaveta tinha ficado por fechar. Os homens de fato escuro voltaram a aparecer assim como os estranhos telefonemas em que Alberto nada dizía.</div><div align="justify">Maria da Luz não esquecera o que encontrara mas à medida que o tempo passava foi pensando cada vez menos no assunto. Até ao dia em que Rosmaninho a recordou.</div><div align="justify">- Mã, tu não fechaste a gaveta...</div><div align="justify">- Cala-te! Não fales! Não voltes nunca mais a abrir a boca sobre esse assunto!</div><div align="justify">- Mas, Mã...</div><div align="justify">- Tu não ouves? Queres que te ponha de castigo?</div><div align="justify">Rosmaninho quedou-se, os olhos encheram-se de lágrimas e numa corrida foi para o jardim.</div><div align="justify">Maria da Luz sentiu-se arrependida de imediato, uma dor no peito e na cabeça tomou-a, sentiu-se nervosa, contrariada, ela própria capaz de romper num pranto por tudo.</div><div align="justify">Não percebía se havía de gostar do marido ou não, se quería aquela vida de segredos para si.</div><div align="justify">Questionava-se continuadamente sobre os seus filhos, a sua ligação a Rosmaninho, a independência dos gémeos, Joaquim, a fotografia, as capas de cartolina creme, um atordoar de situações e sentimentos que não conseguía ordenar e entender como certos ou errados.</div><div align="justify">Apetecía-lhe dormir, muito, esquecer quem era, a sua vida.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-83470498245560966162008-03-25T23:00:00.002+00:002008-05-11T06:23:12.216+01:00CAPÍTULO TRINTA E DOIS - QUE SAUDADES!<div align="justify">Alberto entrou directo para o escritório. Vinha cansado, friorento. Largou a pasta de cabedal em cima da secretária, tomou um Porto, acomodou-se no sofá de couro.</div><div align="justify">Ficou muito tempo assim, sem acção, os olhos perdidos na parede e no quadro que a enfeitava, uma fotografia do Chefe da Nação a preto e branco.</div><div align="justify">Esfregou o rosto, suspirou longamente, sentiu um ardor intenso nos olhos, aliviou o nó da gravata e depois de desligar a luz encaminhou-se para o quarto.</div><div align="justify">Beijou o cabelo de Maria da Luz, afagou o rosto de Rosmaninho.</div><div align="justify">Despiu-se às escuras e enfiou-se na cama passando o braço por cima do filho e da mulher.</div><div align="justify">- Alberto, já chegaste...</div><div align="justify">- Shhhh... olha que acordas o Alberto. Dorme.</div><div align="justify">- Queres que o leve para o quarto dele?</div><div align="justify">- Não, deixa estar.</div><div align="justify">Inspirou profundamente, doía-lhe o peito.</div><div align="justify">- Maria da Luz...</div><div align="justify">- Hum?</div><div align="justify">- Tive tantas saudades vossas!</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-86249414964553800732008-03-24T23:00:00.003+00:002008-05-11T06:07:41.638+01:00CAPÍTULO TRINTA E UM - ANTECIPADAMENTE<div align="justify">Por todo o dia Maria da Luz sentiu uma espécie de electricidade a percorrer-lhe a espinha.</div><div align="justify">Rosmaninho dava-lhe a mão, olhava-a inquiridor sem formular pergunta, ela respondía com os olhos a aflição que a consumia por dentro, nem palavra.</div><div align="justify">A hora de recolher parecía não chegar. </div><div align="justify">Entupiu-se de café e de cigarros e quando a casa finalmente dormiu sentía o coração disparado e um acre na boca que lhe parecíam a tradução do medo de ser apanhada em flagrante.</div><div align="justify">Depois perguntava-se por quem, Alberto não estava nem devería voltar tão rápido, o resto nos seus quartos não daríam por nada, bastava que deixasse tudo como tinha encontrado.</div><div align="justify">Rosmaninho não a deixava, aninhou-se na sua cama, dormitava, e por mais que Maria da Luz o mandasse para o seu quarto ele ía ficando.</div><div align="justify">Ansiosa por ver o tempo a passar decidiu entrar de novo no escritório, o filho consolado no sono da cama materna.</div><div align="justify">Estava escuro e frio, arrepiou-se, esbarrou no sofá, parecía estar cega, conhecía os cantos da sala e no entanto tudo lhe parecía estranho. Acendeu a luz do candeeiro de secretária, os papéis lá estavam, tudo como havía deixado nessa manhã, não sonhara.</div><div align="justify">Pegou no estilete e enfiou-o no orificio da fechadura, deu um pequeno torção, mais um jeitinho, ouviu o estalido e abriu a gaveta devagar.</div><div align="justify">Ficou a olhar para o seu interior, quase conseguía escutar os batimentos do coração, sentiu um aperto na garganta.</div><div align="justify">A porta abriu-se e Rosmaninho esfregando os olhos pelo contraste da escuridão da casa e da luz do cómodo, entrou.</div><div align="justify">- Mã, o pai vem aí...</div><div align="justify">Maria da Luz pensou que ía desmaiar com o susto.</div><div align="justify">Empurrou a gaveta de rompante, desligou a luz, fechou a porta do escritório, deu a mão a Rosmaninho e esgueiraram-se pelo bréu da casa para o quarto.</div><div align="justify">O motor do carro ronronou lá fora, ouviu as portas a baterem, a tosse leve de Alberto, abraçou o filho e fingiram dormir.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-25535088598619730302008-03-23T23:00:00.005+00:002008-05-11T05:47:13.226+01:00CAPÍTULO TRINTA - À ESPERA<div align="justify">Depois que Rosmaninho saíu Maria da Luz vestiu-se, abriu a gavetinha e voltou a ler o bilhete deixado por Alberto. Bebeu cada palavra a tentar descobrir mais do que realmente estava expresso, mas na verdade não encontrou outro sentido para além do que estava escrito e mesmo esse, não lhe dizía muito mais do que a conversa que tinham tido dias antes no escritório.</div><div align="justify">" Não penses mal de mim. Tudo o que faço é para nosso bem, para bem da Nação. Faço-o porque acredito. Não deixes que falem mal de mim, nunca. Teu, Alberto".</div><div align="justify">Maria da Luz dobrou o bilhete e guardou-o junto ao soutien, encaminhou-se para o escritório e trancou-se lá dentro. Foi ao cofre mas estava fechado. Depois tentou as gavetas da secretária mas também não teve sucesso. Vasculhou pela papelada em cima da mesa, demorou-se por alguns mas parecíam-lhe papéis inofensivos sem revelação que lhe pudesse valer, contas por pagar, alfaite, restaurante, hotel. Hotel? Voltou a pegar no papel, viu a data, o nome dele e senhora. Senhora? Mas como se não saíam juntos há vários anos? Ficou furiosa, apetecía-lhe um cigarro mas tinha-os no quarto e agora nem pensar em saír daquele escritório enquanto não descobrisse "aquela senhora".</div><div align="justify">Voltou a tentar as gavetas da secretária, abanou os puxadores, pegou no abre-cartas e forçou a fechadura. Cedeu, um estalido metálico da língua deu de si e baixou-se permitindo a abertura da gaveta. Papéis, mais papéis e por baixo, capas de cartolina creme. Sentou-se na cadeira de Alberto. Abriu as capas de cartolina, tinham fotografias, identificação completa de pessoas que nunca vira, não eram os homens de fato escuro que costumavam aparecer lá em casa.</div><div align="justify">E de repente um susto: a fotografia de Joaquim.</div><div align="justify">Não havía engano, era mesmo ele. Guardou tudo, fechou nervosamente a gaveta pelo mesmo processo.</div><div align="justify">E agora? Que sabía Alberto sobre Joaquim? A surpresa tinha sido tão grande que acabara por não ler nada do que estava escrito.</div><div align="justify">Só lhe restava lá voltar, mais calma, talvez pela noite quando todos dormissem.</div><div align="justify">Até lá era esperar. E esperar que Alberto não desconfiasse do que havía acontecido. Mil vezes maldita a hora em que havía caído na conversa do jardineiro e se tinha deixado levar.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-28078418029957932002008-03-22T23:00:00.002+00:002008-05-10T13:27:25.060+01:00CAPÍTULO VINTE E NOVE - O BILHETE<div align="justify">Maria da Luz só acordou porque ouviu a porta do carro a bater.</div><div align="justify">Levantou-se, vestiu o robe e foi espreitar por entre as cortinas fechadas, já só viu as luzes vermelhas do carro a incendearam a madrugada. As lágrimas correram-lhe em fio, nem soube bem porquê, talvez de uma súbita saudade que a tomou ou da lembrança fresca da noite amorosa que tivera nos braços de Alberto.</div><div align="justify">Acendeu um cigarro e deixou-se estar na escuridão, os olhos já habituados às sombras dos móveis, entreabriu as portadas de vidro, escreveu mentalmente no seu diário o quanto amava aquele homem e como tinham sido levianos os pensamentos que a tomaram por causa de Joaquim. A esta distância parecía-lhe um brutamontes, prometeu-se nunca mais pensar nele e a idéia do diário esfumou-se.</div><div align="justify">Voltou a deitar-se, puxou o almofadão de Alberto para junto do rosto, beijou a fronha embebida do cheiro dele e concluiu que era uma mulher que tinha tudo, porquê tanta pergunta a assaltava, seríam as outras mulheres assim?</div><div align="justify">Acordou com a presença de Rosmaninho, já vestido, o rosto dele muito próximo do seu.</div><div align="justify">- Meu deus, que horas são?</div><div align="justify">- É cedo. Eu é que não consigo dormir. Desde que o pai se foi embora.</div><div align="justify">- Adormeci... e os manos?</div><div align="justify">- Estão a dormir. Só a avó e o avô é que estão levantados, eu ouvi-os.</div><div align="justify">- Tu ouves tudo, não é?</div><div align="justify">- Sim. Mas não faço por mal. Mas ouço.</div><div align="justify">- Eu sei, querido. Vem cá dar um beijo à Mã.</div><div align="justify">- Já leste o bilhete que o pai deixou?</div><div align="justify">- Qual bilhete, Rosmaninho?</div><div align="justify">- Este.</div><div align="justify">Rosmaninho pegou num papel dobrado e entregou-o a Maria da Luz que já se sentara na cama, o coração aos pulos.</div><div align="justify">Leu-o. Depois dobrou-o novamente e guardou-o na gaveta da mesinha de cabeceira.</div><div align="justify">Rosmaninho ficou de olhos muito abertos a olhá-la, ela para ele. Não disseram nada. Abraçaram-se então, forte, apertados, Maria da Luz a beijar repetidamente a cabeça do filho.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-63631052360755728832008-03-21T23:00:00.002+00:002008-05-10T13:08:08.571+01:00CAPÍTULO VINTE E OITO - TRÊS DIAS<div align="justify">Alberto não saíu de Am'art durante três dias, não atendeu o telefone, não recebeu as visitas dos homens de fato preto, não permaneceu no escritório, fechado a mexer na pasta de cabedal, dispensou o motorista.</div><div align="justify">As sua mãos procuravam num gesto doce as mãos de Maria da Luz, envolvíam-lhe os ombros, ajeitava-se nela quando se sentavam. Alberto sorría, por vezes de uma forma triste, os olhos muito brilhantes mas logo se animava com o convivio dos filhos e até com Rosmaninho a atitude era a de um pai que ama o seu filho.</div><div align="justify">Este, temeroso da figura, esquivava-se aos carinhos e procurava a segurança do olhar da mãe, depois impelido por esta lá ía, mãos atrás das costas, rosto envergonhado, submeter-se ao abraço de Alberto que por uma vez até lhe chamou o nome proibido.</div><div align="justify">Os gémeos trepavam o pai, puxavam-lhe os óculos, pedíam cavalinho à vez disputada, uma fala atrapalhada na tenra idade, ignoravam o irmão mais velho, desrespeitavem a hora do lanche na ordem dada pela mãe.</div><div align="justify">Maria da Luz recebeu o marido de forma desconfiada, desabituara-se de atenções e afagos, de tanto tempo a usufruir de uma companhia masculina que se revelara ao longo dos anos tão oposta àquela por quem se apaixonara, e no entanto, aí estava ele de novo, o homem que conhecera e desenhara a casa onde moravam, o seu Alberto.</div><div align="justify">Ficou surpreendida quando na intimidade do quarto ele lhe sussurrou o quanto gostava dela e que ela era mulher da sua vida, depois beijou-a meigo, apaixonadamente, silencioso e a olhá-la na penumbra como quem se despede de alguma coisa.</div><div align="justify">Ela abraçou-o muito, o calor de uma chama que achara quase extinta reacendeu-lhe a certeza do que quería e disse-lhe que o amava, que não o quería longe, que precisava dele, que tinha medo.</div><div align="justify">- Eu também tenho Maria da Luz. Mas tenho que ser mais forte, sou um homem.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-76859643272909557642008-03-20T23:02:00.004+00:002008-04-27T00:23:29.482+01:00CAPÍTULO VINTE E SETE - REVELAÇÕES<div align="justify">- Fecha a porta Maria da Luz.</div><div align="justify">Ela fechou a porta devagarinho e aproximou-se da secretária em frente a ele sentado. Pela primeira vez viu uma arma em cima da mesa, assustou-se. Ele apressou-se a abrir a pasta de cabedal e a guardar a pistola, convidando-a depois a sentar-se no sofá.</div><div align="justify">Serviu um cálice de vinho do Porto para cada um e sentou-se junto a ela. Deu um gole.</div><div align="justify">- Maria da Luz, vou falar-te de uma coisa muito importante e que tu tens de prometer que nunca contarás a ninguém.</div><div align="justify">- Estás a meter-me medo, Alberto...</div><div align="justify">- Não é preciso teres medo. Eu estou aqui e protejo-te, a ti e aos meninos. E é precisamente sobre protecção que te quero falar.</div><div align="justify">- Não estou a perceber nada!</div><div align="justify">- Maria da Luz, tu sabes o que eu faço?</div><div align="justify">- O que fazes? O que fazes como? No trabalho?</div><div align="justify">- Sim, no trabalho, na vida.</div><div align="justify">- Bom, sei que vais para o escritório e de quando em vez tens que viajar...</div><div align="justify">- Óptimo! É mesmo isso! E esse escritório para onde vou todos os dias é que nos dá o dinheiro para nós vivermos nesta casa. E termos segurança para poder vir à rua e andarmos sem sermos roubados ou incomodados por ninguém, entendes?</div><div align="justify">- Mais ou menos...</div><div align="justify">- Se eu não trabalhasse todos os dias afincadamente este País estava infestado de criminosos, gente sem escrúpulos que já nos tería arrancado desta casa e até feito mal aos meninos!</div><div align="justify">- Não estou a perceber... vai acontecer alguma coisa, Alberto?</div><div align="justify">- Vai. E não vai. Já ouviste falar de comunistas?</div><div align="justify">- Comunistas? Tu sempre proibiste de se dizer essa palavra aqui em casa!</div><div align="justify">- E é para não se dizer! Nem se pensar sequer Maria da Luz! Isso é o demónio! Se os comunistas tomassem conta disto era o fim de Portugal!</div><div align="justify">- Mas que tens tu a ver com os comunistas Alberto? É isso que não entendo!</div><div align="justify">- Nada! Simplesmente compete-me zelar pela segurança do nosso País...</div><div align="justify">- É por isso que tens uma pistola? Isso assusta-me, Alberto, e as crianças...</div><div align="justify">- Não tenhas medo Maria da Luz, nada de mal acontecerá.</div><div align="justify">Ele acabou o seu vinho do Porto, levantou-se.</div><div align="justify">- Vamos passar uns dias juntos... Daqui a três dias parto para Espanha.</div><div align="justify">- Mais uma viagem?</div><div align="justify">- Tem de ser. Esta é muito importante. Tens de rezar por mim Maria da Luz.</div><div align="justify">Ela ficou a olhá-lo, ele deu-lhe as mãos, ajudou-a a erguer-se, beijou-lhe a testa.</div><div align="justify">- Agora vai, ocupa-te da casa. Quero um jantar bom, muito bom. Há muito tempo que não estávamos todos juntos, tenho saudades.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-35979739830398490742008-03-20T22:32:00.003+00:002008-04-27T00:19:51.071+01:00CAPÍTULO VINTE E SEIS - CONVERSAS<div align="justify">No inicio do ano Alberto pouco paráva em casa. Tinha noites que nem sequer regressava, telefonava num aviso rápido e sem muitas explicações e desligava quando Maria da Luz lhe perguntava o que se estava a passar.</div><div align="justify">Rosmaninho era a companhia da mãe. Não se ligava muito aos irmãos, sempre virados um para o outro, como se fossem de familias diferentes.</div><div align="justify">Maria da Luz inquiría-se como tinha gerado filhos tão diversos e embora os amasse a sua predilecção era para o filho mais velho que a parecía entender como ninguém.</div><div align="justify">- Mã, porque é que o Joaquim nunca mais voltou?</div><div align="justify">- Não sei. Não deve haver nada para fazer agora.</div><div align="justify">- Tu gostas do Joaquim?</div><div align="justify">- Que pergunta é essa, Rosmaninho?</div><div align="justify">- E gostas do pai?</div><div align="justify">- Claro que sim! E tu também tens de gostar dele! É o teu pai.</div><div align="justify">- Gosto mais do Joaquim. Ele ensina-me coisas. E a ti também.</div><div align="justify">- Que coisas?</div><div align="justify">- Os nomes das flores. E disse-me que tu eras uma flor.</div><div align="justify">- Que conversa! Não te ponhas com essas coisas em frente ao teu pai, olha que ele pode zangar-se!</div><div align="justify">- Eu não digo nada a ninguém. Só a ti.</div><div align="justify">Maria da Luz acendeu um cigarro e aproximou-se das portadas de vidro, afastou as cortinas, perdeu o olhar na chuva que embaciava a vista para fora, lembrou-se daquela tarde.</div><div align="justify">- Mã...</div><div align="justify">- Hum...</div><div align="justify">- O Joaquim não volta. Ele não volta mais.</div><div align="justify">- Ora, deixa lá essa conversa do Joaquim!</div><div align="justify">- Mas é verdade, ele disse-me. Que já tinha feito tudo o que tinha de fazer.</div><div align="justify">- O quê? Explica-me! Que sabes tu Rosmaninho?</div><div align="justify">- Não sei de nada Mã. Ele disse que tinha feito tudo o que precisava fazer na casa de Am'art e o trabalho dele estava acabado.</div><div align="justify">- Mas que trabalho?</div><div align="justify">- Não sei... o de jardineiro?</div><div align="justify">Maria da Luz apagou o cigarro num gesto furioso.</div><div align="justify">Sentiu-se enganada, não contava que Joaquim desaparecesse de vez.</div><div align="justify">- Estás zangada?</div><div align="justify">- Hã?! Claro que não.</div><div align="justify">- O pai vem aí...</div><div align="justify">- O quê?</div><div align="justify">Alberto escancarou a porta do quarto. Rosmaninho saíu.</div><div align="justify">- Maria da Luz, temos de conversar. Vai ter comigo ao escritório. E não demores, por favor.</div><div align="justify">Ela temeu que o marido tivesse descoberto alguma coisa. Ficou nervosa, pensou em Rosmaninho e no que ele lhe contara.</div><div align="justify">Benzeu-se e foi ter ao escritório.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-69621237381194533622008-03-19T20:55:00.001+00:002008-04-27T00:16:10.806+01:00CAPÍTULO VINTE E CINCO - JOAQUIM<div align="justify">Ela deu um grito pelo susto que tomou mas o ribombar da trovoada que disparou nesse momento abafou todo e qualquer som para além do estrondo.</div><div align="justify">Joaquim tapou-lhe a boca com a mão grossa.</div><div align="justify">- Não tenha medo, não lhe vou fazer mal.</div><div align="justify">- Largue-me! Que pensa que está a fazer? </div><div align="justify">- Nada, não vou fazer-lhe nada. Só quero dizer que gosto muito da Senhora e me dá uma pena do raio vê-la assim!</div><div align="justify">- Assim? Assim, como? E largue-me! Vou contar ao Dr.Alberto! Você não sabe do que ele é capaz!</div><div align="justify">- Sei sim, eu sei quem é o Dr. Por isso ainda me dói mais vê-la assim, encostada...</div><div align="justify">Ela olhou-o nos olhos, sentiu o hálito dele, o cheiro a suor dele, o cheiro da roupa de lã molhada, não conseguía controlar a respiração, a veia do pescoço dilatava-se e sentía o ar a fugir. Ele beijou-a devagar, uma, duas vezes, demoradamente, depois forçou-lhe a entrada da lingua na boca apertando os lábios, deixando-lhe um rasto de saliva até ao queixo. Maria da Luz fechou os olhos, perdeu a noção do chão, desiquilibou-se, ele encostou-a ao monte de lenha empilhada.</div><div align="justify">- Meu Deus...</div><div align="justify">- Não digas nada...</div><div align="justify">Levantou-lhe a roupa e chegou-lhe aos seios, baixou o soutien, mordeu-lhe a carne ao de leve e entre os lábios prendeu-lhe os mamilos.</div><div align="justify">- Meu Deus, meu Deus...</div><div align="justify">- Shhhhhh...</div><div align="justify">Depois ajoelhou-se frente a ela, alçou-lhe a saia de fazenda e passou as mãos pelas pernas, junto ao cinto de ligas, um dedo por dentro junto ao recorte das cuecas, o tufo dos pêlos púbicos.</div><div align="justify">- Estás molhada...</div><div align="justify">Ela tomou a cabeça de Joaquim entre as mãos e aproximou-a do seu sexo.</div><div align="justify">Gemía baixinho ao sentir-lhe a lingua quente e a barba a arranhar-lhe as coxas, um calor intenso e de repente a pele arrepiou-se, sentiu as pernas dobrarem-se.</div><div align="justify">Ele levantou-se, passou as costas da mão na boca, cheirou.</div><div align="justify">- Cheiras bem Maria da Luz. Cheiras a mulher.<br />Saíu.</div><div align="justify">A água caía a direito. Ela apertou a roupa junto ao corpo e ficou abraçada a si a chorar.</div><div align="justify">Depois veio para o jardim e ficou a olhar os riscos que os relâmpagos desenhavam no negrume.</div><div align="justify">Rosmaninho veio buscá-la e puxou-a para dentro de casa.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-46610851111905064132008-03-17T23:26:00.003+00:002008-04-27T00:13:20.727+01:00CAPÍTULO VINTE E QUATRO - PÉS DE HORTÊNSIA<div align="justify">Com a chegada das chuvas fortes e das ventanias a presença de Joaquim tornou-se rara e até incerta, uma vês por mês e nunca aos mesmos dias. Maria da Luz sentía-se sempre nervosa junto dele desde aquela troca de palavras e tentava sempre não o olhar no rosto para não denotar essa inquietação, cumprimentava-o num aceno de cabeça, de mão dada à de Rosmaninho, transmitía-lhe as ordens e depois, pelo peso incómodo do silêncio retirava-se para o seu quarto onde entre as cortinas e o fumo de um cigarro observava a ida do jardineiro.</div><div align="justify">Ficava a ver-lhe a passada, as costas largas sob o capote impermeável e as abas do chapéu a pingarem pesadas das bátegas de água, nunca usava guarda-chuva e parecía sempre caminhar levando o mundo à sua frente.</div><div align="justify">Maria da Luz tinha vontade de prosseguir a conversa que ficara em suspenso, fazer-lhe perguntas, saber dele um serviçal, que vía na sua senhora e de quando em vez sentía um rubor nas faces ao imaginar as mãos de Joaquim a tomarem-lhe a cintura. Lavava o rosto, punha um pouco de pó-de-arroz e chamava-se estúpida a si própria, tentando encontrar desprezo na figura do jardineiro.</div><div align="justify">Nesse dia em Dezembro o céu estava chumbo, todo de uma só cor sem nuvem alguma.</div><div align="justify">A criadagem benzía-se e comentava a trovoada que devía estar para estalar. Os meninos no quarto aguardavam a hora do lanche, Rosmaninho pela sua mão, os gémeos de papa à boca.</div><div align="justify">Maria da Luz bordava na companhia da sogra.</div><div align="justify">- Minha Srª, o Joaquim está na cozinha e pede para falar com a senhora.</div><div align="justify">Ela picou-se, uma gota de sangue muito vermelho, levou o dedo à boca. Levantou-se, trémula nas pernas e o coração acelerado.</div><div align="justify">- Boa tarde, Joaquim. Então o que é que aconteceu?</div><div align="justify">- Boa tarde Srª D.Maria da Luz. Precisava que a Senhora visse os pés de hortênsia que eu trouxe.</div><div align="justify">- Pés de hortênsia? Mas eu não percebo nada disso, Joaquim!</div><div align="justify">- Eu sei, mas quería que a Senhora me indicasse o canteiro, se podíamos reservar um lugar para eles...</div><div align="justify">- Mas agora? Agora é época de plantar? Não percebo nada disso, Joaquim... mas se insiste. Deixe-me ir buscar um agasalho.</div><div align="justify">Maria da Luz saíu da cozinha e regressou de casaco de malha forte, mas o Jardineiro já não estava. </div><div align="justify">Saíu à sua procura, deu a volta ao jardim da frente, ao das traseiras, entrou na casa da lenha.</div><div align="justify">Duas mãos fortes puxaram-na e ela sentiu a arranhar no rosto a barba de Joaquim. </div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-48192293098175948082008-03-17T18:39:00.004+00:002008-04-13T09:07:07.648+01:00CAPÍTULO VINTE E TRÊS - JARDINS SUSPENSOS<div align="justify">Rosmaninho escutara a conversa entre os pais e a partir daí, mesmo não percebendo muito bem o que lhe acontecería evitava sempre estar sózinho com Alberto. Maria da Luz por sua vez não voltou a falar no assunto e perante o silêncio do marido e com o passar dos meses entendeu que era idéia esquecida.</div><div align="justify">Além disso sentía-se só. Para além da companhia dos filhos, só encontrava Alberto à hora do jantar e embora este tivesse regressado ao quarto, deitava-se sempre muito tarde. Ele adormecía imediatamente ou ela fingía que dormía. Levava os dias nas funções domésticas e quando tinha tempo para si escrevía no velho caderno. Tinha desistido da poesia. Agora relatava os seus anseios e tristezas como um diário, chamava ao marido o Sr.A, à sogra a Bruxa e a ela própria intitulava-se como uma terceira pessoa, a Intrusa.</div><div align="justify">O outono surgiu ventoso, um lamento que envolvía a casa.</div><div align="justify">Os pedaços mais felizes acontecíam com a vinda do jardineiro, de quinze em quinze dias. </div><div align="justify">Era um homem forte, seco a rondar os cinquenta.</div><div align="justify">Acompanhava-o, falavam de flores, por vezes ela até o ajudava e Rosmaninho com ele desatava a língua num discurso fluente, apontando o nome a algumas plantas.</div><div align="justify">- Onde aprendeste tu isso, Rosmaninho?</div><div align="justify">- Foi o Joaquim que me ensinou!</div><div align="justify">- Ora essa?! E tu aprendeste tudo! Que Rosmaninho mais esperto!</div><div align="justify">Ríam os três. Mas Maria da Luz rapidamente se sentía triste de novo. Calava-se. Mandava o filho para dentro de casa por causa do vento.</div><div align="justify">- A Srª D.Maria da Luz... precisava era de amor...</div><div align="justify">Ela corou.</div><div align="justify">- Se é que me faço entender...</div><div align="justify">- Não estou a perceber Joaquim. Eu sou uma mulher casada! Respeito!</div><div align="justify">- Respeito tem a Senhora, falta-lhe é amor.</div><div align="justify">- Joaquim, aviso-o que se continuar com essa conversa faço queixa ao Dr. Alberto...</div><div align="justify">- Não faz nada, Srª D. Maria da Luz, a Senhora sabe que eu tenho razão! Até as suas mãos gritam o que lhe vai na alma.</div><div align="justify">Maria da Luz correu para dentro de casa e fechou-se no quarto, deu a volta à chave, olhou as mãos, sentiu um calor queimar-lhe as faces e só voltou a saír quando da janela viu o jardineiro a ir-se embora.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-24909638386844404642008-03-16T20:18:00.002+00:002008-04-13T08:36:19.326+01:00CAPÍTULO VINTE E DOIS - CRESCER<div align="justify">O quarto de Rosmaninho tinha-se tornado pequeno para ele e para os berços dos gémeos. Maria da Luz vía-o triste e sempre muito calado. Especialmente na presença do pai, que este quando o inquiría, gaguejava, atrapalhando-se ainda mais na sua fala de criança. Alberto elevava o tom de voz e aborrecía-se chamando a mulher como a responsável para o atraso do filho em falar direito.</div><div align="justify">- É o que dá tanto mimo!</div><div align="justify">- Tu assustas o menino!</div><div align="justify">- Já devía falar! Mas não! Sempre de volta das tuas saias! Nem parece rapaz!</div><div align="justify">- É uma criança Alberto, uma criança!</div><div align="justify">- Isso não é desculpa! E ainda por cima gago!</div><div align="justify">- Ele só gagueja quando fala contigo! Tu fazes-lhe medo!</div><div align="justify">- É mesmo bom que tenha medo! A ver se se torna um homem!</div><div align="justify">- Isso é ridiculo! Ele é apenas uma criança!</div><div align="justify">- Ridiculo?! Tu já vais ver! Vou metê-lo num colégio e acaba-se essas merdas de andar sempre agarrado a ti!</div><div align="justify">- O quê?! Tu não faças isso!</div><div align="justify">- Não? Veremos!</div><div align="justify">- Alberto se fizeres isso eu...</div><div align="justify">- Tu o quê?</div><div align="justify">Maria da Luz naquele momento odiou o marido, odiou-se a si, odiou a sua vida. Não compreendía onde estava o homem de uns anos atrás, atencioso, que parecía diferente dos outros.</div><div align="justify">- Eu nada. Faz o que entenderes Alberto. Tu és o chefe de familia.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-24418950799594228212008-03-15T07:55:00.003+00:002008-04-13T08:15:54.785+01:00CAPÍTULO VINTE E UM - CONTRA TUDO E CONTRA TODOS<div align="justify">Nos meses de calor Maria da Luz saturava-se. Estava cansada. Os gémeos exigíam-lhe uma atenção constante e ela sentía que aos poucos perdía a sua identidade de mulher.</div><div align="justify">Parou de amamentar. Foi chamada a atenção pela sogra que não entendía como podía uma mãe deixar os seus filhos chorarem com fome mas Maria da Luz estava determinada e quando voltaram a falar em amas de leite para a substituír, ela opôs-se decidida e enfrentou a sogra que a avisou ir falar com Alberto. Maria da Luz nem lhe respondeu. Mas o marido chamou-a ao escritório.</div><div align="justify">- Que se passa agora?</div><div align="justify">- Nada.</div><div align="justify">- A minha mãe veio falar comigo e disse-me que tu deixas os meninos com fome, que choram!</div><div align="justify">- Isso passa-lhes.</div><div align="justify">- Tu tens obrigações nesta casa Maria da Luz! É essa a tua função! Cuidar dos teus filhos!</div><div align="justify">- E cuido. Mas também quero cuidar de mim!</div><div align="justify">- Que conversa é essa? Não estou a perceber...</div><div align="justify">- Nem poderías! Sou eu que os amamento! Está mais que na altura de parar, eles não passam fome, apenas estranham não ser o leite da mãe. E eu estou cansada Alberto.</div><div align="justify">- Cansada? De quê?!</div><div align="justify">- Cansada, como é que há-de ser... cansada.</div><div align="justify">- Mas tu só cuidas dos rapazes e da casa! A minha mãe ainda te ajuda, tens as criadas! Como podes estar cansada?</div><div align="justify">- Mas estou! Estou cansada de ser só mãe! Cansada de me olhar para o espelho e não encontrar a Maria da Luz!</div><div align="justify">- Tu estás doida mulher!</div><div align="justify">- Pois estou. E por isso a minha decisão está tomada, não volto a dar mama.</div><div align="justify">Maria da Luz saíu do escritório. Alberto deu um soco na secretária e amaldiçoou o calor.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-84219642969139053762008-03-14T17:01:00.002+00:002008-03-21T21:44:28.972+00:00CAPÍTULO VINTE - PRIMAVERAS<div align="justify">Março apareceu encantador, radioso, um sol morno que convidava a passar as tardes no jardim agora completamente florido e ordenado, depois das mãos experientes de um velho jardineiro se ter ocupado de extraír tudo o que retirava espaço à beleza das roseiras.</div><div align="justify">Maria da Luz apreciava na doçura das tardes aquela calmaria interior que lhe tomava os pensamentos, os desejos, fechava os olhos e deixava-se levar pela imaginação de um amor que lhe arrebatasse os sentidos e o corpo, sorría. Encontrava nesses momentos uma solidão que a completava e a fazía esquecer choros e fraldas e a direcção da casa agora totalmente de sua responsabilidade.</div><div align="justify">Por vezes escrevía, rabiscava o que gostava de chamar ensaios de poesia mas mal sentía o motor do carro a dar a curva apressava-se a esconder o caderno e a caneta de tinta permanente no cesto das lãs e pegava no tricot muito atenta.</div><div align="justify">Alberto chegava, a pasta preta de pele entalada no sovaco, dava-lhe um beijo na testa e perguntava pelos meninos, servía-se dum copo de limonada e ficavam em silêncio até o cigarro dele se queimar. Maria da Luz gostava desta pequena intimidade a dois, tão rara, tão deles como se nada nem ninguém pudesse estragar a perfeição daquele instante.</div><div align="justify">Audaz, tirava-lhe o cigarro da boca, puxava uma fumaça e beijava-o para de seguida soltar a baforada, trincar-lhe de manso a orelha e dizer-lhe acho que estou a arder...</div><div align="justify">Mas Alberto umas vezes ría baixo, doutras admoestava-lhe da sua posição de mãe e Maria da Luz desconcertada mordía a lingua para não chorar.</div><div align="justify">Era nessas alturas que Rosmaninho chegava, passinhos curtos, envolvia o pescoço da mãe nos seus braços gorduchos e esfregava o nariz no dela.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-881085825896301152008-03-12T23:00:00.005+00:002008-03-21T20:59:48.215+00:00CAPÍTULO DEZANOVE - D.LÍDIA<div align="justify">Numa manhã a cozinheira chamou por Maria da Luz, que não sabía o que fazer, não tinha ordens para o dia, ninguém sabía de D.Lídia, já a tinham procurado mas ninguém a achava.</div><div align="justify">- Mas onde é que essa mulher se meteu?</div><div align="justify">A cozinheira não sabía e do resto do pessoal a resposta era a mesma, até ao motorista tinham perguntado mas este não vira ninguém saír e até o Doutor que a esta hora já lhe tería dito quais as ordens ainda não tinha aparecido.</div><div align="justify">Maria da Luz saíu numa fúria do quarto, empurrou a maçaneta da porta do escritório e escancarou a porta, abriu os resposteiros e abanou-o mal ajeitado e vestido deitado no sofá de couro.</div><div align="justify">- O que é que se passa? Alberto, acorda!</div><div align="justify">- O que se passa? O que se passa do quê? De que falas Maria da Luz?</div><div align="justify">- Onde está ela?</div><div align="justify">- Mas que vem a ser isto? Já não disse que não quero ninguém aqui?</div><div align="justify">- Ela! Ela! Aquela mulher horrível de que tu tanto gostas!</div><div align="justify">- Quem?</div><div align="justify">- Não te faças de desentendido!</div><div align="justify">A cozinheira que tinha seguido Maria da Luz achou por bem deixar a cena mas a patroa agarrou-a por um braço.</div><div align="justify">- Diga ao Doutor o que me disse a mim!</div><div align="justify">A mulher ruborizou, sentiu um medo imenso e aos soluços lá foi repetindo o estranho desaparecimento da governanta.</div><div align="justify">- Mas... foi-se embora? Para onde?</div><div align="justify">Maria da Luz perdeu a paciência e foi ao quarto de D.Lídia, escancarou a porta do guarda-vestidos e só encontrou os cabides solitários, remexeu na gaveta da mesinha de cabeceira e nada.</div><div align="justify">Alberto entretanto acendera um cigarro e tomava um copo de água, aguardando o regresso da mulher.</div><div align="justify">- Nada! Não está lá nada! Levou tudo! Até as fardas! Tens de fazer alguma coisa, Alberto!</div><div align="justify">- Eu? Deves estar louca Maria da Luz! Achas que me vou ocupar de um assunto doméstico? Tem paciência!</div><div align="justify">- Sim, tu! Tens tantos conhecimentos! Na policia, na Pide, sei lá!</div><div align="justify">- Deixa-te disso, Maria da Luz! A policia é para outras coisas, não é para descobrir governantas que desparecem a meio da noite! Era o que mais faltava!</div><div align="justify">- A meio da noite? Como sabes que foi a meio da noite?</div><div align="justify">- Ora! Não sei! Mas se ontem estava cá em casa e hoje de manhã não está deve ter partido a meio da noite!</div><div align="justify">Maria da Luz sentou-se, Alberto pôs-se a seu lado, rodeou-lhe os ombros, ela estranhou a atenção, olhou-o inquiridora.</div><div align="justify">- Deixa lá isso. Pensei que a detestavas. Governantas é coisa que não falta.</div><div align="justify">- Isto é tudo tão estranho...</div><div align="justify">- Sabemos lá nós o que lhe terá passado pela cabeça?! Se calhar foi visitar algum parente, alguém doente...</div><div align="justify">- Não. Se fosse isso avisava. E até levou as fardas. Alguma coisa aconteceu...</div><div align="justify">- Esquece a D.Lídia, pensa no pequeno-almoço que vamos tomar juntos. Traz as crianças, anda, vai dizer à cozinha que prepare pão, leite, café, essas coisas. Ah! E aquela compota de abóbora feita pela minha mãe.</div><div align="justify">Alberto levantou-se, deu a mão a Maria da Luz que o seguiu atrás, devagar.</div><div align="justify">Depois parou.</div><div align="justify">- Alberto, será que ela era comunista?</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-54180790936628613282008-03-11T23:07:00.003+00:002008-03-19T06:20:04.581+00:00CAPÍTULO DEZOITO - A FAMILIA<div align="justify">No inicio de Dezembro Alberto foi bater à porta do quarto.</div><div align="justify">- Maria da Luz, temos de conversar.</div><div align="justify">- Diz.</div><div align="justify">- Estamos no Natal.</div><div align="justify">- Eu sei.</div><div align="justify">- Ainda bem. Então preciso que te lembres das tuas obrigações como esposa e mãe e organizes um consoada como deve ser.</div><div align="justify">- Não estou a perceber Alberto...</div><div align="justify">- Que não percebes? Quero que organizes um jantar de véspera de Natal e no dia 25 um almoço para esta familia e mais algumas pessoas que vou convidar.</div><div align="justify">- Uma festa?</div><div align="justify">- Não! Nada de festas! Uma coisa de familia, uma coisa como deve ser.</div><div align="justify">- Um jantar de familia com gente de fora? Mas quem vem? Preciso de saber quantas pessoas... mas a que se deve isto agora? Sabes bem que com os meninos pouco tempo me sobra...</div><div align="justify">- Isso não é desculpa, Maria da Luz! A tua obrigação é atenderes à tua familia!</div><div align="justify">- E achas que não o tenho feito?</div><div align="justify">- Não comeces!</div><div align="justify">- Daqui a pouco os gémeos acordam se continuas a levantar a voz, Alberto!</div><div align="justify">- Têm que se habituar a ouvir a minha voz! </div><div align="justify">- Quem diría?!</div><div align="justify">Alberto levantou o braço e preparou a palma mas o choro das crianças atrasou-lhe o movimento e empurrou com força Maria da Luz que recuou aos safanões.</div><div align="justify">- Já viste o que fizeste? Queres bater-me? Outra vez, Alberto?</div><div align="justify">- Tu fazes-me perder a cabeça, mulher...</div><div align="justify">Saíu. Bateu a porta com força. Os gémeos calaram-se.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-12833094486047541872008-03-11T20:44:00.002+00:002008-03-19T06:18:00.679+00:00CAPÍTULO DEZASSETE - A PORTA FECHADA<div align="justify">Alberto voltou a dormir no escritório. De porta fechada à chave. Durante o dia e pela noite.</div><div align="justify">As serviçais ficaram proibidas de entrar para as limpezas diárias e apenas ao Sábado de manhã, sob o olhar vigilante do Doutor tinham permissão para arejar o cómodo e na maior rapidez, proceder ao espanar, varrer e lavar os vidros das portadas.</div><div align="justify">Havía um cheiro acre impregnado pelos reposteiros, pelas almofadas de veludo que cobriam os sofás de couro, nas tapeçarias comidas aqui e ali pela cinza incandescente dos cigarros fumados uns atrás dos outros. Alberto tinha agora uma nódoa amarelada entre os dedos de tanto segurar os cigarros amortalhados até ao limite da queima. Tingía-lhe as unhas, os dentes.</div><div align="justify">Andava sempre nervoso, pouco se alimentava e a luz do candeeiro de secretária escoava-se pela fresta indiscreta da porta fechada quando, altas horas pela madrugada, ainda se ouvíam as vozes dos homens de fato negro.</div><div align="justify">Maria da Luz não saía do quarto, os berços ladeando a cama, despertavam-na ao menor ruído.</div><div align="justify">Ocupava-se freneticamente dos gémeos quase esquecendo Rosmaninho.</div><div align="justify">Este abeirava-se de mansinho e espreitava em bicos dos pés os manos muito cor de rosa. Depois deslizava-se silencioso até à borda da cama e ficava a olhar fascinado para a mãe a amamentar os irmãos.</div><div align="justify">Por vezes, adormecía. Encolhia-se aos poucos até ao lugar do pai e passava a noite ao lado de Maria da Luz que se levantava, rodava a chave na porta e depois cobría Rosmaninho, vestido com a roupa de andar por fora.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-615621753558420254.post-61612940813715278972008-03-10T20:49:00.003+00:002008-03-10T21:22:42.457+00:00CAPÍTULO DEZASSEIS - JURAS<div align="justify">Embora Maria da Luz tivesse ficado combalida da intervenção cirúgica e internada por mais de oito dias, sentía-se animada de uma força interior que a levou a querer amamentar. Desde a sogra até às enfermeiras foi alertada para a carga dupla de ter de suportar os gémeos colados ao peito à vez, quase sem intervalo, mas ela estava decidida e prometeu a Alberto que desta vez não sería igual e que Rosmaninho tinha sido viagem de marinheiro de primeiras águas.</div><div align="justify">Alberto olhou-a longamente e depois encolheu os ombros, que estas coisas de filhos eram da competência da mulher e não protestou.</div><div align="justify">Já no regresso a casa Maria da Luz dava sinais de cansaço extremo mas a teimosia levou-a adiante.</div><div align="justify">- D.Lídia temos de conversar. Agora que a senhora e os meninos estão em casa tudo vai voltar ao normal. Vou acertar-lhe as contas. Estamos entendidos?</div><div align="justify">A governanta arregalou os olhos e de mãos postas atirou-se aos pés de Alberto, depois segurou-lhe a bainha das calças e num pranto entrecortado por ranho e arrependimento só repetía ai Doutor.</div><div align="justify">- Levante-se! Não suporto este tipo de situações! Levante-se, já lhe disse! Acha que os seus actos íam ficar impunes? Por quem me toma?!</div><div align="justify">Mas D.Lídia não parava o choro nem as calças do Doutor e de rastos, à medida que ele recuava, implorava-lhe piedade, piedade por Cristo.</div><div align="justify">Alberto agachou-se e levantou-a pelos braços, apertando-a e abanando-a, o som a saír aos bocados conforme os safanões.</div><div align="justify">- Mulher estúpida! Posso acabar contigo num instante! E ninguém o vem a saber! Ponha-se daqui para fora! Faça a mala e vá-se embora!</div><div align="justify">Maria da Luz escancarou a porta do escritório e ficou petrificada perante a cena.</div><div align="justify">- O que é isto?</div><div align="justify">A governanta lançou-se de novo ao chão, desta feita aos pés de Maria da Luz.</div><div align="justify">- Juro, minha Senhora! Juro por tudo de mais sagrado! Se eu lhe contasse... lembra-se? Lembra-se da ama de leite? Aquela do menino Alberto?</div><div align="justify">Alberto voltou a repetir o gesto de içar a governanta e olhou-a nos olhos, esta calou-se.</div><div align="justify">- Que foi? Que tem a ama de Rosmaninho?</div><div align="justify">- Ai minha Senhora! É que o Doutor diz que a Senhora não dá conta dos gémeos e quer chamar a ama de leite e eu fiquei aqui numa aflição...</div><div align="justify">- Aflição? Mas porquê? Que se passa?</div><div align="justify">- Oh, minha Senhora, porque eu tenho a certeza que a Senhora é a melhor mãe do mundo e com a ajuda da Senhora sua sogra e a minha os meninos hão-de criar-se!</div><div align="justify">Ficou num choro pequenino, miúdo, um som irritante modulado na mesma intensidade.</div><div align="justify">Maria da Luz olhou para Alberto e saíu.</div><div align="justify">Pouco andou, perdeu os sentidos.</div><div align="justify">- Se me mandar embora, Senhor Doutor conto a esta casa o que vi naquela noite! Juro por Deus que conto que vi a ama a chu...</div><div align="justify">- Cala-te maldita!</div><div align="justify">E todos acorreram a Maria da Luz.</div>Sant'Anahttp://www.blogger.com/profile/10806168141982305388noreply@blogger.com