CAPÍTULO QUARENTA - DE VOLTA A CASA

Ao fim de pouco mais de três meses Alberto fechou a conta e a familia regressou à casa renovada.
Maria da Luz apenas tinha ido por uma vez ver o decurso das obras mas perante o jardim devassado não quisera lá voltar.
Agora era tempo de subir a escadaria que Alberto lhe prometera, mas o desânimo das suas rosas plantadas e escolhidas com Joaquim, a pregadeira achada de D.Lídia, condicionaram-lhe a plenitude do que podería sentir no regresso.
Depois, a alteração dos cómodos com o seu quarto no piso superior fazíam-na sentir num ambiente estranho, o cheiro de tintas ainda frescas retirara todo o passado olfactivo que tinha das suas coisas. Procurou o seu caderno, encontrou-o na cesta das lãs onde o tinha deixado, uma fina película de pó a conservá-lo, intocável.
Alberto deu-lhe carta branca para comprar novos cortinados, tapetes, o que ela quisesse.
Animou-se com a novidade.
- E o jardim?
- Que tem?
- Que tem?! Achas que aquilo é um jardim? É um terreno esburacado!
- Teremos que contratar um jardineiro.
- E o Joaquim?
- Ora! Vou lá eu saber o que é feito desse pobre diabo!
- Que queres dizer com isso?
- Que não vou estar à espera que ele apareça. Teremos que arranjar outro.
- Mas eu estava tão habituada ao Joaquim...
- Maria da Luz, esse Joaquim não é o único jardineiro do mundo! Que se passa?
- Nada, nada! Mas ele percebía das minhas rosas...
- E outro virá que também perceba. Deixa, não te rales, eu trato de arranjar um homem para cuidar do teu jardim.
- Quem?
- Sei lá quem! Tens cada uma Maria da Luz!
- Podías procurar o Joaquim...
- Mas que raio! Outra vez?! Que interesse é esse pelo Joaquim?
- Nenhum! Nenhum!
Maria da Luz sentiu o rosto a escaldar-se, quase teve medo de Alberto.

CAPÍTULO TRINTA E NOVE - O QUE DIZ O MAR

Alojaram-se num hotel com vista para a baía de Cascais. Maria da Luz ocupava o seu tempo entre bordados e o peitoril da varanda. Embevecía-se com o pôr-do-sol e deixava a imaginação fluír e arrastar-se como o astro, até se esconder na linha do horizonte e entrar na noite. Era quando ouvía Alberto chamá-la para dentro. Achava então, que despertava de um sonho lindo e que a sua realidade de esposa e mãe eram tão pouco perante a grandiosidade do mar a receber o final do dia.
Suspirava.
Enquanto se preparava para descerem para o restaurante, em frente ao espelho compondo o cabelo que ondulara pela aragem maritima, recordava o seu caderno e quanto fora leviana ao dispensar os seus versos simples, e até mesmo o seu diário.
Sentía saudades de casa, da segurança do seu quarto, dos seus cigarros enrolados em mão trémula quando o pensamento lhe escapava para outras latitudes.
Agora entendía-se.
Percebía em si o gosto da partida e o quanto desejava conhecer mundo. Imaginava-se de mão dada com Rosmaninho a bordo de um grande navio, o chapéu de abas largas com fita a condizer com o vestido vermelho de bolinhas brancas. Tudo a esvoaçar como uma imagem que de si mesma assistisse. Interrogava-se porque não vía os gémeos e o marido a seu lado nessa viagem.
Entristecía-se.
A vida que parecía invejável aos olhos dos outros era uma âncora na sua.
- Não fiques assim triste Maria da Luz. Daqui a nada voltaremos a AM'art e verás como está linda!
Mas Alberto não a sossegava, só ouvía as ondas do mar.

CAPÍTULO TRINTA E OITO - PENSAR, PENSAR

No dia seguinte, de malas feitas, encaixaram-se no carro, o motorista de prontidão.
Maria da Luz olhou AM'art: estava irreconhecível, a casa sem o telhado vermelho num dos lados assemelhava-se a uma boca escancarada e sem dentes e do jardim nada restava, tudo espezinhado e amontoado como ervas daninhas.
Sentiu um aperto no peito, lembrou-se do diário escondido no meio de fios de lã e linhas de bordar, esquecera-o como um pedaço de vida que se abandona por trazer memórias de tempos muito longínquos. Na malinha de mão carregava a pregadeira de D.Lídia, muitas perguntas e ainda mais conjecturas, não sossegara o raciocinio desde que Rosmaninho lhe entregara o achado.
Se o enfeite estava enterrado alguém o quisera esconder, isso era lógico no imediato.
Mas porquê?
E esta questão não deixava de a martelar, ainda tornava mais misterioso o desaparecimento da governanta.
Viu-a distintamente a desfilar pela casa naquele cinzento agoirento, a cruz pregada sobre o lado esquerdo a brilhar... o quanto a tinha em estima pois sempre a compunha como um tique.
Então não a podía ter perdido, não tinha sido um descuido. E se estava fundo na terra...
- Maria da Luz, vamos?
Ela olhou o marido.
E de repente atravessou-lhe o espirito que Alberto tería de alguma forma intervenção no desaparecimento daquela mulher que tanto odiava.
- Vamos, não fiques assim. Quando voltarmos será uma casa nova, vais ver! Linda!
Uma casa nova cheia de fantasmas velhos e perguntas a forrar as paredes, pensou Maria da Luz e entrou no carro, deu a mão a Rosmaninho.

CAPÍTULO TRINTA E SETE - A CRUZ

Maria da Luz tratou de Rosmaninho, a pedrada atirada por um dos irmãos tinha-o atingido em cheio, exibía um lenho esbeiçado que teimava em não parar de sangrar mas quando a mãe lhe mencionou o hospital para ser cosido, ele agarrou-lhe as mãos e entrou em pânico.
Maria da Luz assustou-se com a reacção do filho e não teve outro remédio senão prometer-lhe que não o levaría. Uniu como poude as duas metades da carne fina e aplicou-lhe um adesivo. Depois brincou com ele, enfaixou-lhe a cabeça numa ligadura muito branca que contrastava com o cabelo negro e chamou-lhe soldado ferido em batalha.
- Como é que tu foste arranjar um trabalho destes Rosmaninho?
- Foi o João e o Luís...
- Os manos? Mas como?
- Queríam bater-me...
- Mas porquê? Não quero zangas entre irmãos! Têm de fazer as pazes!
- Não quero Mã!
- Que é isso Rosmaninho?! São os manos!
- Mas eu não quero... eu achei uma coisa e eles queríam tirar...
- Que coisa? O que tu achaste foi uma pedrada, isso sim!
- Não. Foi isto...
Rosmaninho enfiou a mão na peúga, tirou devagar o punho pequenino, exibiu a palma com o achado.
Maria da Luz sentiu o ar a fugir-lhe.
- Onde encontraste isso?
- No canteiro das rosas vermelhas. Estava no fundo da terra, eu estava a fazer um buraco com os manos e depois achei...
- Dá à Mã, Rosmaninho, eu guardo o teu tesouro. Como te sentes?
- Tenho sono...
- Olha, vais tomar um comprimido e vais para a cama. Amanhã vamos para um hotel, um sitio bonito, com muitas novidades.
Maria da Luz deitou o filho, deixou-se ficar na penumbra do quarto, sentada à beira da cama, o troar lá fora de martelos e de gritos do pessoal das obras.
Levou a mão ao bolso da sua saia e tirou a pregadeira em forma de cruz que fora de D.Lídia.

CAPÍTULO TRINTA E SEIS - OBRAS

Na semana seguinte chegaram os operários liderados pelo mestre de obras, carregados de cordas, escadotes e demais ferramentas.
Alberto estava corado, sorridente, rolos de papel comprido entalados no sovaco, dava ordens, instruía de braço esticado o mestre que acenava com a cabeça.
Maria da Luz espreitava entre as cortinas da janela do seu quarto. Sentía uma contrariedade que não conseguía explicar, preocupava-se com os seus canteiros, recordava as tardes passadas na companhia de Joaquim a dispôr os pés de rosa, lembrou a capa de cartolina que escondía a fotografia do jardineiro.
Rosmaninho e os gémeos corríam lá fora, a novidade de tanta gente em acção dava-lhes uma liberdade de se comportarem como habitualmente não era permitido, pisavam as flores, empoleiravam-se nos primeiros degraus do escadote, imitavam os homens que víam a cuspir.
- Maria da Luz. Maria da Luz, não me ouves?
Ela virou-se, não se apercebera da entrada do marido.
- Vamos ter de ir para um hotel durante uns tempos.
- Um hotel? Deixar a minha casa?
- Tem de ser. Não é possível viver-se com este entulho e barulho.
- Mas... Alberto, e as crianças? Isto é mesmo necessário? Nós ajeitamo-nos...
- Claro que é necessário! Tens de falar com a criadagem, isso não são contas do meu rosário.
- Falar como?
- Ora, dispensá-los, mandá-los para casa durante uns tempos! Eles que vão lá à terrinha deles!
Ouviu-se o som de vidro a estilhaçar. Maria da Luz e Alberto acorreram ao jardim.
Rosmaninho chorava, as mãos na testa a sangrar. Os gémeos fugiram num grito de troça.
- Meu Deus! Que foi isto?!
Maria da Luz limpava a testa de Rosmaninho, beijava-lhe o cabelo, apertava-o contra si.
- Onde te dói? Caíste? Foi isso, Rosmaninho? Oh, meu querido!
- Deixa-te disso Maria da Luz! Uma cabeça partida é coisa de rapazes!
- Mas tu não vês Alberto?! Como ele sangra?
- Ora, uma coisa de nada! Anda cá rapaz!
Rosmaninho escapuliu-se para dentro de casa. Doía-lhe a testa, a cabeça toda, sentía-se tonto.
Mas os manos não lhe tinham conseguido tirar o que descobrira enterrado no jardim.

CAPÍTULO TRINTA E CINCO - A ESCADARIA

Com a Primavera a romper no jardim entre leques de cores e uma brisa adocicada os medos de Maria da Luz desanuviaram-se. Ficava maravilhada com a força da natureza a exalar o perfume das flores e os insectos numa dança incansável de volta do pólen.
Não voltara a escrever o seu diário, fazía-o mentalmente, tinha receio que alguém lhe apanhasse o caderno e pensava seriamente numa oportunidade para o lançar às chamas e acabar de vez com o rasto dos seus pensamentos.
- Em que pensas?
- Alberto, não te ouvi...
- Eu sei. Estive a apreciar-te. És linda, sabías?
Ela sorriu, ele abraçou-a pelas costas e pousou o queixo no ombro dela.
- Ando com umas ideias... Que me dizes de aumentar a casa?
- Aumentar?
- Sim, obras. Fazer um piso por cima deste, montar uma escadaria e fazer uma casa de dois andares.
- Uma escadaria? Como no cinema?
Alberto riu. Ela também.
- Uma escada que desse para o primeiro andar, para o nosso quarto, para o quarto dos rapazes, dos meus pais. Dar mais privacidade ao sitio onde se descansa.
- Hum... e donde veio essa idéia? Assim? Tão repentino?
- Não é repentino, sempre tive vontade de o fazer. Mas agora impõe-se, os rapazes estão crescidos e o quarto é pequeno demais para os três.
- E essas obras seríam para quando? És tu que vais fazer os desenhos?
- Os desenhos estão feitos e entregues ao mestre de obras. Para a semana devem começar.
Maria da Luz voltou-se, irada.
- Quando tencionavas pôr-me ao corrente? Quando aparecessem os pedreiros? Parece impossível! Eu não sou tua mulher!
- Maria da Luz! Era surpresa! Não estás contente?
- Não! Afinal para que sirvo eu? Abrir as pernas e dar-te filhos?
Alberto levou o braço atrás e deu-lhe uma bofetada.
- Comporte-se! Não se esqueça que tem o meu nome!
- Eu é que me comporto? E as senhoras com quem vais para os hotéis?
- O quê?
Maria da Luz fugiu do jardim, as lágrimas a arderem no rosto marcado pela mão de Alberto. Trancou-se no quarto, um choro convulsivo atirada em cima da cama, o punho a bater na colcha de cetim.
Rosmaninho entrou, pousou a sua mão pequenina na da mãe e acalmou a fúria aos poucos.


CAPÍTULO TRINTA E QUATRO - O PAPÃO

Em meados de Fevereiro Alberto apareceu radiante no final do dia. Vinha de aspecto cansado e olheirento mas com uma disposição como há muito não apresentava.
- Pronto! Agora está tudo bem!
- O quê?
- Tudo, estamos sossegados, Maria da Luz!
- Não te entendo...
- Podemos dormir descansados!
- Continuo sem te conseguir perceber, Alberto. Passou-se alguma coisa?
- Hã... digamos que o papão se foi!
- O papão? Que história é essa?
- O papão acabou, morreu!
- Não te percebo, queres explicar o que se está a passar?
- Não quero que moas essa cabecinha, basta que acredites no que te digo.
- Detesto quando fazes de mim uma mulher estúpida!
- Ora! não é isso! Só não quero que te preocupes! Ainda mais quando há razões mais que suficientes para não te ralares! Tudo está bem, tudo está bem...
- Mas que razões, queres dizer? Falas mas não explicas do que falas e eu não sou parva Alberto! Sei muito mais do que imaginas!
- Que quer isso dizer, Maria da Luz?
Maria da Luz sentiu um calor a tingir-lhe o rosto, ficou sem saber que continuidade dar à conversa sem desvendar-lhe que tinha encontrado a fotografia de Joaquim, que tinha andado a mexer onde todos estavam proibidos de tocar.
- Nada, não quer dizer nada.
Um dos homens de fato negro entrou no escritório e Maria da Luz saíu.
Mas ficou rente à porta, a cabeça inclinada a tentar perceber o que se passava lá dentro, ouvía frases aos bocados, " deu luta, não havía meio de finar-se", "ela gritou, muito", "dois balázios, só para o caso", "hão-de encontrar o carro", "ficou tudo limpo, nem um pingo" e depois a gargalhada de Alberto interrompida por um ataque de tosse.
O homem de negro saíu, Maria da Luz afastou-se, sentiu medo, muito medo, tal como as crianças têm medo do papão.

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS - RESSACAS

Nos dias que se seguiram Alberto voltou a ficar em casa.
Não se apercebeu que Maria da Luz estivera no escritório nem que a gaveta tinha ficado por fechar. Os homens de fato escuro voltaram a aparecer assim como os estranhos telefonemas em que Alberto nada dizía.
Maria da Luz não esquecera o que encontrara mas à medida que o tempo passava foi pensando cada vez menos no assunto. Até ao dia em que Rosmaninho a recordou.
- Mã, tu não fechaste a gaveta...
- Cala-te! Não fales! Não voltes nunca mais a abrir a boca sobre esse assunto!
- Mas, Mã...
- Tu não ouves? Queres que te ponha de castigo?
Rosmaninho quedou-se, os olhos encheram-se de lágrimas e numa corrida foi para o jardim.
Maria da Luz sentiu-se arrependida de imediato, uma dor no peito e na cabeça tomou-a, sentiu-se nervosa, contrariada, ela própria capaz de romper num pranto por tudo.
Não percebía se havía de gostar do marido ou não, se quería aquela vida de segredos para si.
Questionava-se continuadamente sobre os seus filhos, a sua ligação a Rosmaninho, a independência dos gémeos, Joaquim, a fotografia, as capas de cartolina creme, um atordoar de situações e sentimentos que não conseguía ordenar e entender como certos ou errados.
Apetecía-lhe dormir, muito, esquecer quem era, a sua vida.

CAPÍTULO TRINTA E DOIS - QUE SAUDADES!

Alberto entrou directo para o escritório. Vinha cansado, friorento. Largou a pasta de cabedal em cima da secretária, tomou um Porto, acomodou-se no sofá de couro.
Ficou muito tempo assim, sem acção, os olhos perdidos na parede e no quadro que a enfeitava, uma fotografia do Chefe da Nação a preto e branco.
Esfregou o rosto, suspirou longamente, sentiu um ardor intenso nos olhos, aliviou o nó da gravata e depois de desligar a luz encaminhou-se para o quarto.
Beijou o cabelo de Maria da Luz, afagou o rosto de Rosmaninho.
Despiu-se às escuras e enfiou-se na cama passando o braço por cima do filho e da mulher.
- Alberto, já chegaste...
- Shhhh... olha que acordas o Alberto. Dorme.
- Queres que o leve para o quarto dele?
- Não, deixa estar.
Inspirou profundamente, doía-lhe o peito.
- Maria da Luz...
- Hum?
- Tive tantas saudades vossas!

CAPÍTULO TRINTA E UM - ANTECIPADAMENTE

Por todo o dia Maria da Luz sentiu uma espécie de electricidade a percorrer-lhe a espinha.
Rosmaninho dava-lhe a mão, olhava-a inquiridor sem formular pergunta, ela respondía com os olhos a aflição que a consumia por dentro, nem palavra.
A hora de recolher parecía não chegar.
Entupiu-se de café e de cigarros e quando a casa finalmente dormiu sentía o coração disparado e um acre na boca que lhe parecíam a tradução do medo de ser apanhada em flagrante.
Depois perguntava-se por quem, Alberto não estava nem devería voltar tão rápido, o resto nos seus quartos não daríam por nada, bastava que deixasse tudo como tinha encontrado.
Rosmaninho não a deixava, aninhou-se na sua cama, dormitava, e por mais que Maria da Luz o mandasse para o seu quarto ele ía ficando.
Ansiosa por ver o tempo a passar decidiu entrar de novo no escritório, o filho consolado no sono da cama materna.
Estava escuro e frio, arrepiou-se, esbarrou no sofá, parecía estar cega, conhecía os cantos da sala e no entanto tudo lhe parecía estranho. Acendeu a luz do candeeiro de secretária, os papéis lá estavam, tudo como havía deixado nessa manhã, não sonhara.
Pegou no estilete e enfiou-o no orificio da fechadura, deu um pequeno torção, mais um jeitinho, ouviu o estalido e abriu a gaveta devagar.
Ficou a olhar para o seu interior, quase conseguía escutar os batimentos do coração, sentiu um aperto na garganta.
A porta abriu-se e Rosmaninho esfregando os olhos pelo contraste da escuridão da casa e da luz do cómodo, entrou.
- Mã, o pai vem aí...
Maria da Luz pensou que ía desmaiar com o susto.
Empurrou a gaveta de rompante, desligou a luz, fechou a porta do escritório, deu a mão a Rosmaninho e esgueiraram-se pelo bréu da casa para o quarto.
O motor do carro ronronou lá fora, ouviu as portas a baterem, a tosse leve de Alberto, abraçou o filho e fingiram dormir.

CAPÍTULO TRINTA - À ESPERA

Depois que Rosmaninho saíu Maria da Luz vestiu-se, abriu a gavetinha e voltou a ler o bilhete deixado por Alberto. Bebeu cada palavra a tentar descobrir mais do que realmente estava expresso, mas na verdade não encontrou outro sentido para além do que estava escrito e mesmo esse, não lhe dizía muito mais do que a conversa que tinham tido dias antes no escritório.
" Não penses mal de mim. Tudo o que faço é para nosso bem, para bem da Nação. Faço-o porque acredito. Não deixes que falem mal de mim, nunca. Teu, Alberto".
Maria da Luz dobrou o bilhete e guardou-o junto ao soutien, encaminhou-se para o escritório e trancou-se lá dentro. Foi ao cofre mas estava fechado. Depois tentou as gavetas da secretária mas também não teve sucesso. Vasculhou pela papelada em cima da mesa, demorou-se por alguns mas parecíam-lhe papéis inofensivos sem revelação que lhe pudesse valer, contas por pagar, alfaite, restaurante, hotel. Hotel? Voltou a pegar no papel, viu a data, o nome dele e senhora. Senhora? Mas como se não saíam juntos há vários anos? Ficou furiosa, apetecía-lhe um cigarro mas tinha-os no quarto e agora nem pensar em saír daquele escritório enquanto não descobrisse "aquela senhora".
Voltou a tentar as gavetas da secretária, abanou os puxadores, pegou no abre-cartas e forçou a fechadura. Cedeu, um estalido metálico da língua deu de si e baixou-se permitindo a abertura da gaveta. Papéis, mais papéis e por baixo, capas de cartolina creme. Sentou-se na cadeira de Alberto. Abriu as capas de cartolina, tinham fotografias, identificação completa de pessoas que nunca vira, não eram os homens de fato escuro que costumavam aparecer lá em casa.
E de repente um susto: a fotografia de Joaquim.
Não havía engano, era mesmo ele. Guardou tudo, fechou nervosamente a gaveta pelo mesmo processo.
E agora? Que sabía Alberto sobre Joaquim? A surpresa tinha sido tão grande que acabara por não ler nada do que estava escrito.
Só lhe restava lá voltar, mais calma, talvez pela noite quando todos dormissem.
Até lá era esperar. E esperar que Alberto não desconfiasse do que havía acontecido. Mil vezes maldita a hora em que havía caído na conversa do jardineiro e se tinha deixado levar.

CAPÍTULO VINTE E NOVE - O BILHETE

Maria da Luz só acordou porque ouviu a porta do carro a bater.
Levantou-se, vestiu o robe e foi espreitar por entre as cortinas fechadas, já só viu as luzes vermelhas do carro a incendearam a madrugada. As lágrimas correram-lhe em fio, nem soube bem porquê, talvez de uma súbita saudade que a tomou ou da lembrança fresca da noite amorosa que tivera nos braços de Alberto.
Acendeu um cigarro e deixou-se estar na escuridão, os olhos já habituados às sombras dos móveis, entreabriu as portadas de vidro, escreveu mentalmente no seu diário o quanto amava aquele homem e como tinham sido levianos os pensamentos que a tomaram por causa de Joaquim. A esta distância parecía-lhe um brutamontes, prometeu-se nunca mais pensar nele e a idéia do diário esfumou-se.
Voltou a deitar-se, puxou o almofadão de Alberto para junto do rosto, beijou a fronha embebida do cheiro dele e concluiu que era uma mulher que tinha tudo, porquê tanta pergunta a assaltava, seríam as outras mulheres assim?
Acordou com a presença de Rosmaninho, já vestido, o rosto dele muito próximo do seu.
- Meu deus, que horas são?
- É cedo. Eu é que não consigo dormir. Desde que o pai se foi embora.
- Adormeci... e os manos?
- Estão a dormir. Só a avó e o avô é que estão levantados, eu ouvi-os.
- Tu ouves tudo, não é?
- Sim. Mas não faço por mal. Mas ouço.
- Eu sei, querido. Vem cá dar um beijo à Mã.
- Já leste o bilhete que o pai deixou?
- Qual bilhete, Rosmaninho?
- Este.
Rosmaninho pegou num papel dobrado e entregou-o a Maria da Luz que já se sentara na cama, o coração aos pulos.
Leu-o. Depois dobrou-o novamente e guardou-o na gaveta da mesinha de cabeceira.
Rosmaninho ficou de olhos muito abertos a olhá-la, ela para ele. Não disseram nada. Abraçaram-se então, forte, apertados, Maria da Luz a beijar repetidamente a cabeça do filho.

CAPÍTULO VINTE E OITO - TRÊS DIAS

Alberto não saíu de Am'art durante três dias, não atendeu o telefone, não recebeu as visitas dos homens de fato preto, não permaneceu no escritório, fechado a mexer na pasta de cabedal, dispensou o motorista.
As sua mãos procuravam num gesto doce as mãos de Maria da Luz, envolvíam-lhe os ombros, ajeitava-se nela quando se sentavam. Alberto sorría, por vezes de uma forma triste, os olhos muito brilhantes mas logo se animava com o convivio dos filhos e até com Rosmaninho a atitude era a de um pai que ama o seu filho.
Este, temeroso da figura, esquivava-se aos carinhos e procurava a segurança do olhar da mãe, depois impelido por esta lá ía, mãos atrás das costas, rosto envergonhado, submeter-se ao abraço de Alberto que por uma vez até lhe chamou o nome proibido.
Os gémeos trepavam o pai, puxavam-lhe os óculos, pedíam cavalinho à vez disputada, uma fala atrapalhada na tenra idade, ignoravam o irmão mais velho, desrespeitavem a hora do lanche na ordem dada pela mãe.
Maria da Luz recebeu o marido de forma desconfiada, desabituara-se de atenções e afagos, de tanto tempo a usufruir de uma companhia masculina que se revelara ao longo dos anos tão oposta àquela por quem se apaixonara, e no entanto, aí estava ele de novo, o homem que conhecera e desenhara a casa onde moravam, o seu Alberto.
Ficou surpreendida quando na intimidade do quarto ele lhe sussurrou o quanto gostava dela e que ela era mulher da sua vida, depois beijou-a meigo, apaixonadamente, silencioso e a olhá-la na penumbra como quem se despede de alguma coisa.
Ela abraçou-o muito, o calor de uma chama que achara quase extinta reacendeu-lhe a certeza do que quería e disse-lhe que o amava, que não o quería longe, que precisava dele, que tinha medo.
- Eu também tenho Maria da Luz. Mas tenho que ser mais forte, sou um homem.

CAPÍTULO VINTE E SETE - REVELAÇÕES

- Fecha a porta Maria da Luz.
Ela fechou a porta devagarinho e aproximou-se da secretária em frente a ele sentado. Pela primeira vez viu uma arma em cima da mesa, assustou-se. Ele apressou-se a abrir a pasta de cabedal e a guardar a pistola, convidando-a depois a sentar-se no sofá.
Serviu um cálice de vinho do Porto para cada um e sentou-se junto a ela. Deu um gole.
- Maria da Luz, vou falar-te de uma coisa muito importante e que tu tens de prometer que nunca contarás a ninguém.
- Estás a meter-me medo, Alberto...
- Não é preciso teres medo. Eu estou aqui e protejo-te, a ti e aos meninos. E é precisamente sobre protecção que te quero falar.
- Não estou a perceber nada!
- Maria da Luz, tu sabes o que eu faço?
- O que fazes? O que fazes como? No trabalho?
- Sim, no trabalho, na vida.
- Bom, sei que vais para o escritório e de quando em vez tens que viajar...
- Óptimo! É mesmo isso! E esse escritório para onde vou todos os dias é que nos dá o dinheiro para nós vivermos nesta casa. E termos segurança para poder vir à rua e andarmos sem sermos roubados ou incomodados por ninguém, entendes?
- Mais ou menos...
- Se eu não trabalhasse todos os dias afincadamente este País estava infestado de criminosos, gente sem escrúpulos que já nos tería arrancado desta casa e até feito mal aos meninos!
- Não estou a perceber... vai acontecer alguma coisa, Alberto?
- Vai. E não vai. Já ouviste falar de comunistas?
- Comunistas? Tu sempre proibiste de se dizer essa palavra aqui em casa!
- E é para não se dizer! Nem se pensar sequer Maria da Luz! Isso é o demónio! Se os comunistas tomassem conta disto era o fim de Portugal!
- Mas que tens tu a ver com os comunistas Alberto? É isso que não entendo!
- Nada! Simplesmente compete-me zelar pela segurança do nosso País...
- É por isso que tens uma pistola? Isso assusta-me, Alberto, e as crianças...
- Não tenhas medo Maria da Luz, nada de mal acontecerá.
Ele acabou o seu vinho do Porto, levantou-se.
- Vamos passar uns dias juntos... Daqui a três dias parto para Espanha.
- Mais uma viagem?
- Tem de ser. Esta é muito importante. Tens de rezar por mim Maria da Luz.
Ela ficou a olhá-lo, ele deu-lhe as mãos, ajudou-a a erguer-se, beijou-lhe a testa.
- Agora vai, ocupa-te da casa. Quero um jantar bom, muito bom. Há muito tempo que não estávamos todos juntos, tenho saudades.

CAPÍTULO VINTE E SEIS - CONVERSAS

No inicio do ano Alberto pouco paráva em casa. Tinha noites que nem sequer regressava, telefonava num aviso rápido e sem muitas explicações e desligava quando Maria da Luz lhe perguntava o que se estava a passar.
Rosmaninho era a companhia da mãe. Não se ligava muito aos irmãos, sempre virados um para o outro, como se fossem de familias diferentes.
Maria da Luz inquiría-se como tinha gerado filhos tão diversos e embora os amasse a sua predilecção era para o filho mais velho que a parecía entender como ninguém.
- Mã, porque é que o Joaquim nunca mais voltou?
- Não sei. Não deve haver nada para fazer agora.
- Tu gostas do Joaquim?
- Que pergunta é essa, Rosmaninho?
- E gostas do pai?
- Claro que sim! E tu também tens de gostar dele! É o teu pai.
- Gosto mais do Joaquim. Ele ensina-me coisas. E a ti também.
- Que coisas?
- Os nomes das flores. E disse-me que tu eras uma flor.
- Que conversa! Não te ponhas com essas coisas em frente ao teu pai, olha que ele pode zangar-se!
- Eu não digo nada a ninguém. Só a ti.
Maria da Luz acendeu um cigarro e aproximou-se das portadas de vidro, afastou as cortinas, perdeu o olhar na chuva que embaciava a vista para fora, lembrou-se daquela tarde.
- Mã...
- Hum...
- O Joaquim não volta. Ele não volta mais.
- Ora, deixa lá essa conversa do Joaquim!
- Mas é verdade, ele disse-me. Que já tinha feito tudo o que tinha de fazer.
- O quê? Explica-me! Que sabes tu Rosmaninho?
- Não sei de nada Mã. Ele disse que tinha feito tudo o que precisava fazer na casa de Am'art e o trabalho dele estava acabado.
- Mas que trabalho?
- Não sei... o de jardineiro?
Maria da Luz apagou o cigarro num gesto furioso.
Sentiu-se enganada, não contava que Joaquim desaparecesse de vez.
- Estás zangada?
- Hã?! Claro que não.
- O pai vem aí...
- O quê?
Alberto escancarou a porta do quarto. Rosmaninho saíu.
- Maria da Luz, temos de conversar. Vai ter comigo ao escritório. E não demores, por favor.
Ela temeu que o marido tivesse descoberto alguma coisa. Ficou nervosa, pensou em Rosmaninho e no que ele lhe contara.
Benzeu-se e foi ter ao escritório.

CAPÍTULO VINTE E CINCO - JOAQUIM

Ela deu um grito pelo susto que tomou mas o ribombar da trovoada que disparou nesse momento abafou todo e qualquer som para além do estrondo.
Joaquim tapou-lhe a boca com a mão grossa.
- Não tenha medo, não lhe vou fazer mal.
- Largue-me! Que pensa que está a fazer?
- Nada, não vou fazer-lhe nada. Só quero dizer que gosto muito da Senhora e me dá uma pena do raio vê-la assim!
- Assim? Assim, como? E largue-me! Vou contar ao Dr.Alberto! Você não sabe do que ele é capaz!
- Sei sim, eu sei quem é o Dr. Por isso ainda me dói mais vê-la assim, encostada...
Ela olhou-o nos olhos, sentiu o hálito dele, o cheiro a suor dele, o cheiro da roupa de lã molhada, não conseguía controlar a respiração, a veia do pescoço dilatava-se e sentía o ar a fugir. Ele beijou-a devagar, uma, duas vezes, demoradamente, depois forçou-lhe a entrada da lingua na boca apertando os lábios, deixando-lhe um rasto de saliva até ao queixo. Maria da Luz fechou os olhos, perdeu a noção do chão, desiquilibou-se, ele encostou-a ao monte de lenha empilhada.
- Meu Deus...
- Não digas nada...
Levantou-lhe a roupa e chegou-lhe aos seios, baixou o soutien, mordeu-lhe a carne ao de leve e entre os lábios prendeu-lhe os mamilos.
- Meu Deus, meu Deus...
- Shhhhhh...
Depois ajoelhou-se frente a ela, alçou-lhe a saia de fazenda e passou as mãos pelas pernas, junto ao cinto de ligas, um dedo por dentro junto ao recorte das cuecas, o tufo dos pêlos púbicos.
- Estás molhada...
Ela tomou a cabeça de Joaquim entre as mãos e aproximou-a do seu sexo.
Gemía baixinho ao sentir-lhe a lingua quente e a barba a arranhar-lhe as coxas, um calor intenso e de repente a pele arrepiou-se, sentiu as pernas dobrarem-se.
Ele levantou-se, passou as costas da mão na boca, cheirou.
- Cheiras bem Maria da Luz. Cheiras a mulher.
Saíu.
A água caía a direito. Ela apertou a roupa junto ao corpo e ficou abraçada a si a chorar.
Depois veio para o jardim e ficou a olhar os riscos que os relâmpagos desenhavam no negrume.
Rosmaninho veio buscá-la e puxou-a para dentro de casa.

CAPÍTULO VINTE E QUATRO - PÉS DE HORTÊNSIA

Com a chegada das chuvas fortes e das ventanias a presença de Joaquim tornou-se rara e até incerta, uma vês por mês e nunca aos mesmos dias. Maria da Luz sentía-se sempre nervosa junto dele desde aquela troca de palavras e tentava sempre não o olhar no rosto para não denotar essa inquietação, cumprimentava-o num aceno de cabeça, de mão dada à de Rosmaninho, transmitía-lhe as ordens e depois, pelo peso incómodo do silêncio retirava-se para o seu quarto onde entre as cortinas e o fumo de um cigarro observava a ida do jardineiro.
Ficava a ver-lhe a passada, as costas largas sob o capote impermeável e as abas do chapéu a pingarem pesadas das bátegas de água, nunca usava guarda-chuva e parecía sempre caminhar levando o mundo à sua frente.
Maria da Luz tinha vontade de prosseguir a conversa que ficara em suspenso, fazer-lhe perguntas, saber dele um serviçal, que vía na sua senhora e de quando em vez sentía um rubor nas faces ao imaginar as mãos de Joaquim a tomarem-lhe a cintura. Lavava o rosto, punha um pouco de pó-de-arroz e chamava-se estúpida a si própria, tentando encontrar desprezo na figura do jardineiro.
Nesse dia em Dezembro o céu estava chumbo, todo de uma só cor sem nuvem alguma.
A criadagem benzía-se e comentava a trovoada que devía estar para estalar. Os meninos no quarto aguardavam a hora do lanche, Rosmaninho pela sua mão, os gémeos de papa à boca.
Maria da Luz bordava na companhia da sogra.
- Minha Srª, o Joaquim está na cozinha e pede para falar com a senhora.
Ela picou-se, uma gota de sangue muito vermelho, levou o dedo à boca. Levantou-se, trémula nas pernas e o coração acelerado.
- Boa tarde, Joaquim. Então o que é que aconteceu?
- Boa tarde Srª D.Maria da Luz. Precisava que a Senhora visse os pés de hortênsia que eu trouxe.
- Pés de hortênsia? Mas eu não percebo nada disso, Joaquim!
- Eu sei, mas quería que a Senhora me indicasse o canteiro, se podíamos reservar um lugar para eles...
- Mas agora? Agora é época de plantar? Não percebo nada disso, Joaquim... mas se insiste. Deixe-me ir buscar um agasalho.
Maria da Luz saíu da cozinha e regressou de casaco de malha forte, mas o Jardineiro já não estava.
Saíu à sua procura, deu a volta ao jardim da frente, ao das traseiras, entrou na casa da lenha.
Duas mãos fortes puxaram-na e ela sentiu a arranhar no rosto a barba de Joaquim.

CAPÍTULO VINTE E TRÊS - JARDINS SUSPENSOS

Rosmaninho escutara a conversa entre os pais e a partir daí, mesmo não percebendo muito bem o que lhe acontecería evitava sempre estar sózinho com Alberto. Maria da Luz por sua vez não voltou a falar no assunto e perante o silêncio do marido e com o passar dos meses entendeu que era idéia esquecida.
Além disso sentía-se só. Para além da companhia dos filhos, só encontrava Alberto à hora do jantar e embora este tivesse regressado ao quarto, deitava-se sempre muito tarde. Ele adormecía imediatamente ou ela fingía que dormía. Levava os dias nas funções domésticas e quando tinha tempo para si escrevía no velho caderno. Tinha desistido da poesia. Agora relatava os seus anseios e tristezas como um diário, chamava ao marido o Sr.A, à sogra a Bruxa e a ela própria intitulava-se como uma terceira pessoa, a Intrusa.
O outono surgiu ventoso, um lamento que envolvía a casa.
Os pedaços mais felizes acontecíam com a vinda do jardineiro, de quinze em quinze dias.
Era um homem forte, seco a rondar os cinquenta.
Acompanhava-o, falavam de flores, por vezes ela até o ajudava e Rosmaninho com ele desatava a língua num discurso fluente, apontando o nome a algumas plantas.
- Onde aprendeste tu isso, Rosmaninho?
- Foi o Joaquim que me ensinou!
- Ora essa?! E tu aprendeste tudo! Que Rosmaninho mais esperto!
Ríam os três. Mas Maria da Luz rapidamente se sentía triste de novo. Calava-se. Mandava o filho para dentro de casa por causa do vento.
- A Srª D.Maria da Luz... precisava era de amor...
Ela corou.
- Se é que me faço entender...
- Não estou a perceber Joaquim. Eu sou uma mulher casada! Respeito!
- Respeito tem a Senhora, falta-lhe é amor.
- Joaquim, aviso-o que se continuar com essa conversa faço queixa ao Dr. Alberto...
- Não faz nada, Srª D. Maria da Luz, a Senhora sabe que eu tenho razão! Até as suas mãos gritam o que lhe vai na alma.
Maria da Luz correu para dentro de casa e fechou-se no quarto, deu a volta à chave, olhou as mãos, sentiu um calor queimar-lhe as faces e só voltou a saír quando da janela viu o jardineiro a ir-se embora.

CAPÍTULO VINTE E DOIS - CRESCER

O quarto de Rosmaninho tinha-se tornado pequeno para ele e para os berços dos gémeos. Maria da Luz vía-o triste e sempre muito calado. Especialmente na presença do pai, que este quando o inquiría, gaguejava, atrapalhando-se ainda mais na sua fala de criança. Alberto elevava o tom de voz e aborrecía-se chamando a mulher como a responsável para o atraso do filho em falar direito.
- É o que dá tanto mimo!
- Tu assustas o menino!
- Já devía falar! Mas não! Sempre de volta das tuas saias! Nem parece rapaz!
- É uma criança Alberto, uma criança!
- Isso não é desculpa! E ainda por cima gago!
- Ele só gagueja quando fala contigo! Tu fazes-lhe medo!
- É mesmo bom que tenha medo! A ver se se torna um homem!
- Isso é ridiculo! Ele é apenas uma criança!
- Ridiculo?! Tu já vais ver! Vou metê-lo num colégio e acaba-se essas merdas de andar sempre agarrado a ti!
- O quê?! Tu não faças isso!
- Não? Veremos!
- Alberto se fizeres isso eu...
- Tu o quê?
Maria da Luz naquele momento odiou o marido, odiou-se a si, odiou a sua vida. Não compreendía onde estava o homem de uns anos atrás, atencioso, que parecía diferente dos outros.
- Eu nada. Faz o que entenderes Alberto. Tu és o chefe de familia.

CAPÍTULO VINTE E UM - CONTRA TUDO E CONTRA TODOS

Nos meses de calor Maria da Luz saturava-se. Estava cansada. Os gémeos exigíam-lhe uma atenção constante e ela sentía que aos poucos perdía a sua identidade de mulher.
Parou de amamentar. Foi chamada a atenção pela sogra que não entendía como podía uma mãe deixar os seus filhos chorarem com fome mas Maria da Luz estava determinada e quando voltaram a falar em amas de leite para a substituír, ela opôs-se decidida e enfrentou a sogra que a avisou ir falar com Alberto. Maria da Luz nem lhe respondeu. Mas o marido chamou-a ao escritório.
- Que se passa agora?
- Nada.
- A minha mãe veio falar comigo e disse-me que tu deixas os meninos com fome, que choram!
- Isso passa-lhes.
- Tu tens obrigações nesta casa Maria da Luz! É essa a tua função! Cuidar dos teus filhos!
- E cuido. Mas também quero cuidar de mim!
- Que conversa é essa? Não estou a perceber...
- Nem poderías! Sou eu que os amamento! Está mais que na altura de parar, eles não passam fome, apenas estranham não ser o leite da mãe. E eu estou cansada Alberto.
- Cansada? De quê?!
- Cansada, como é que há-de ser... cansada.
- Mas tu só cuidas dos rapazes e da casa! A minha mãe ainda te ajuda, tens as criadas! Como podes estar cansada?
- Mas estou! Estou cansada de ser só mãe! Cansada de me olhar para o espelho e não encontrar a Maria da Luz!
- Tu estás doida mulher!
- Pois estou. E por isso a minha decisão está tomada, não volto a dar mama.
Maria da Luz saíu do escritório. Alberto deu um soco na secretária e amaldiçoou o calor.

CAPÍTULO VINTE - PRIMAVERAS

Março apareceu encantador, radioso, um sol morno que convidava a passar as tardes no jardim agora completamente florido e ordenado, depois das mãos experientes de um velho jardineiro se ter ocupado de extraír tudo o que retirava espaço à beleza das roseiras.
Maria da Luz apreciava na doçura das tardes aquela calmaria interior que lhe tomava os pensamentos, os desejos, fechava os olhos e deixava-se levar pela imaginação de um amor que lhe arrebatasse os sentidos e o corpo, sorría. Encontrava nesses momentos uma solidão que a completava e a fazía esquecer choros e fraldas e a direcção da casa agora totalmente de sua responsabilidade.
Por vezes escrevía, rabiscava o que gostava de chamar ensaios de poesia mas mal sentía o motor do carro a dar a curva apressava-se a esconder o caderno e a caneta de tinta permanente no cesto das lãs e pegava no tricot muito atenta.
Alberto chegava, a pasta preta de pele entalada no sovaco, dava-lhe um beijo na testa e perguntava pelos meninos, servía-se dum copo de limonada e ficavam em silêncio até o cigarro dele se queimar. Maria da Luz gostava desta pequena intimidade a dois, tão rara, tão deles como se nada nem ninguém pudesse estragar a perfeição daquele instante.
Audaz, tirava-lhe o cigarro da boca, puxava uma fumaça e beijava-o para de seguida soltar a baforada, trincar-lhe de manso a orelha e dizer-lhe acho que estou a arder...
Mas Alberto umas vezes ría baixo, doutras admoestava-lhe da sua posição de mãe e Maria da Luz desconcertada mordía a lingua para não chorar.
Era nessas alturas que Rosmaninho chegava, passinhos curtos, envolvia o pescoço da mãe nos seus braços gorduchos e esfregava o nariz no dela.

CAPÍTULO DEZANOVE - D.LÍDIA

Numa manhã a cozinheira chamou por Maria da Luz, que não sabía o que fazer, não tinha ordens para o dia, ninguém sabía de D.Lídia, já a tinham procurado mas ninguém a achava.
- Mas onde é que essa mulher se meteu?
A cozinheira não sabía e do resto do pessoal a resposta era a mesma, até ao motorista tinham perguntado mas este não vira ninguém saír e até o Doutor que a esta hora já lhe tería dito quais as ordens ainda não tinha aparecido.
Maria da Luz saíu numa fúria do quarto, empurrou a maçaneta da porta do escritório e escancarou a porta, abriu os resposteiros e abanou-o mal ajeitado e vestido deitado no sofá de couro.
- O que é que se passa? Alberto, acorda!
- O que se passa? O que se passa do quê? De que falas Maria da Luz?
- Onde está ela?
- Mas que vem a ser isto? Já não disse que não quero ninguém aqui?
- Ela! Ela! Aquela mulher horrível de que tu tanto gostas!
- Quem?
- Não te faças de desentendido!
A cozinheira que tinha seguido Maria da Luz achou por bem deixar a cena mas a patroa agarrou-a por um braço.
- Diga ao Doutor o que me disse a mim!
A mulher ruborizou, sentiu um medo imenso e aos soluços lá foi repetindo o estranho desaparecimento da governanta.
- Mas... foi-se embora? Para onde?
Maria da Luz perdeu a paciência e foi ao quarto de D.Lídia, escancarou a porta do guarda-vestidos e só encontrou os cabides solitários, remexeu na gaveta da mesinha de cabeceira e nada.
Alberto entretanto acendera um cigarro e tomava um copo de água, aguardando o regresso da mulher.
- Nada! Não está lá nada! Levou tudo! Até as fardas! Tens de fazer alguma coisa, Alberto!
- Eu? Deves estar louca Maria da Luz! Achas que me vou ocupar de um assunto doméstico? Tem paciência!
- Sim, tu! Tens tantos conhecimentos! Na policia, na Pide, sei lá!
- Deixa-te disso, Maria da Luz! A policia é para outras coisas, não é para descobrir governantas que desparecem a meio da noite! Era o que mais faltava!
- A meio da noite? Como sabes que foi a meio da noite?
- Ora! Não sei! Mas se ontem estava cá em casa e hoje de manhã não está deve ter partido a meio da noite!
Maria da Luz sentou-se, Alberto pôs-se a seu lado, rodeou-lhe os ombros, ela estranhou a atenção, olhou-o inquiridora.
- Deixa lá isso. Pensei que a detestavas. Governantas é coisa que não falta.
- Isto é tudo tão estranho...
- Sabemos lá nós o que lhe terá passado pela cabeça?! Se calhar foi visitar algum parente, alguém doente...
- Não. Se fosse isso avisava. E até levou as fardas. Alguma coisa aconteceu...
- Esquece a D.Lídia, pensa no pequeno-almoço que vamos tomar juntos. Traz as crianças, anda, vai dizer à cozinha que prepare pão, leite, café, essas coisas. Ah! E aquela compota de abóbora feita pela minha mãe.
Alberto levantou-se, deu a mão a Maria da Luz que o seguiu atrás, devagar.
Depois parou.
- Alberto, será que ela era comunista?

CAPÍTULO DEZOITO - A FAMILIA

No inicio de Dezembro Alberto foi bater à porta do quarto.
- Maria da Luz, temos de conversar.
- Diz.
- Estamos no Natal.
- Eu sei.
- Ainda bem. Então preciso que te lembres das tuas obrigações como esposa e mãe e organizes um consoada como deve ser.
- Não estou a perceber Alberto...
- Que não percebes? Quero que organizes um jantar de véspera de Natal e no dia 25 um almoço para esta familia e mais algumas pessoas que vou convidar.
- Uma festa?
- Não! Nada de festas! Uma coisa de familia, uma coisa como deve ser.
- Um jantar de familia com gente de fora? Mas quem vem? Preciso de saber quantas pessoas... mas a que se deve isto agora? Sabes bem que com os meninos pouco tempo me sobra...
- Isso não é desculpa, Maria da Luz! A tua obrigação é atenderes à tua familia!
- E achas que não o tenho feito?
- Não comeces!
- Daqui a pouco os gémeos acordam se continuas a levantar a voz, Alberto!
- Têm que se habituar a ouvir a minha voz!
- Quem diría?!
Alberto levantou o braço e preparou a palma mas o choro das crianças atrasou-lhe o movimento e empurrou com força Maria da Luz que recuou aos safanões.
- Já viste o que fizeste? Queres bater-me? Outra vez, Alberto?
- Tu fazes-me perder a cabeça, mulher...
Saíu. Bateu a porta com força. Os gémeos calaram-se.

CAPÍTULO DEZASSETE - A PORTA FECHADA

Alberto voltou a dormir no escritório. De porta fechada à chave. Durante o dia e pela noite.
As serviçais ficaram proibidas de entrar para as limpezas diárias e apenas ao Sábado de manhã, sob o olhar vigilante do Doutor tinham permissão para arejar o cómodo e na maior rapidez, proceder ao espanar, varrer e lavar os vidros das portadas.
Havía um cheiro acre impregnado pelos reposteiros, pelas almofadas de veludo que cobriam os sofás de couro, nas tapeçarias comidas aqui e ali pela cinza incandescente dos cigarros fumados uns atrás dos outros. Alberto tinha agora uma nódoa amarelada entre os dedos de tanto segurar os cigarros amortalhados até ao limite da queima. Tingía-lhe as unhas, os dentes.
Andava sempre nervoso, pouco se alimentava e a luz do candeeiro de secretária escoava-se pela fresta indiscreta da porta fechada quando, altas horas pela madrugada, ainda se ouvíam as vozes dos homens de fato negro.
Maria da Luz não saía do quarto, os berços ladeando a cama, despertavam-na ao menor ruído.
Ocupava-se freneticamente dos gémeos quase esquecendo Rosmaninho.
Este abeirava-se de mansinho e espreitava em bicos dos pés os manos muito cor de rosa. Depois deslizava-se silencioso até à borda da cama e ficava a olhar fascinado para a mãe a amamentar os irmãos.
Por vezes, adormecía. Encolhia-se aos poucos até ao lugar do pai e passava a noite ao lado de Maria da Luz que se levantava, rodava a chave na porta e depois cobría Rosmaninho, vestido com a roupa de andar por fora.

CAPÍTULO DEZASSEIS - JURAS

Embora Maria da Luz tivesse ficado combalida da intervenção cirúgica e internada por mais de oito dias, sentía-se animada de uma força interior que a levou a querer amamentar. Desde a sogra até às enfermeiras foi alertada para a carga dupla de ter de suportar os gémeos colados ao peito à vez, quase sem intervalo, mas ela estava decidida e prometeu a Alberto que desta vez não sería igual e que Rosmaninho tinha sido viagem de marinheiro de primeiras águas.
Alberto olhou-a longamente e depois encolheu os ombros, que estas coisas de filhos eram da competência da mulher e não protestou.
Já no regresso a casa Maria da Luz dava sinais de cansaço extremo mas a teimosia levou-a adiante.
- D.Lídia temos de conversar. Agora que a senhora e os meninos estão em casa tudo vai voltar ao normal. Vou acertar-lhe as contas. Estamos entendidos?
A governanta arregalou os olhos e de mãos postas atirou-se aos pés de Alberto, depois segurou-lhe a bainha das calças e num pranto entrecortado por ranho e arrependimento só repetía ai Doutor.
- Levante-se! Não suporto este tipo de situações! Levante-se, já lhe disse! Acha que os seus actos íam ficar impunes? Por quem me toma?!
Mas D.Lídia não parava o choro nem as calças do Doutor e de rastos, à medida que ele recuava, implorava-lhe piedade, piedade por Cristo.
Alberto agachou-se e levantou-a pelos braços, apertando-a e abanando-a, o som a saír aos bocados conforme os safanões.
- Mulher estúpida! Posso acabar contigo num instante! E ninguém o vem a saber! Ponha-se daqui para fora! Faça a mala e vá-se embora!
Maria da Luz escancarou a porta do escritório e ficou petrificada perante a cena.
- O que é isto?
A governanta lançou-se de novo ao chão, desta feita aos pés de Maria da Luz.
- Juro, minha Senhora! Juro por tudo de mais sagrado! Se eu lhe contasse... lembra-se? Lembra-se da ama de leite? Aquela do menino Alberto?
Alberto voltou a repetir o gesto de içar a governanta e olhou-a nos olhos, esta calou-se.
- Que foi? Que tem a ama de Rosmaninho?
- Ai minha Senhora! É que o Doutor diz que a Senhora não dá conta dos gémeos e quer chamar a ama de leite e eu fiquei aqui numa aflição...
- Aflição? Mas porquê? Que se passa?
- Oh, minha Senhora, porque eu tenho a certeza que a Senhora é a melhor mãe do mundo e com a ajuda da Senhora sua sogra e a minha os meninos hão-de criar-se!
Ficou num choro pequenino, miúdo, um som irritante modulado na mesma intensidade.
Maria da Luz olhou para Alberto e saíu.
Pouco andou, perdeu os sentidos.
- Se me mandar embora, Senhor Doutor conto a esta casa o que vi naquela noite! Juro por Deus que conto que vi a ama a chu...
- Cala-te maldita!
E todos acorreram a Maria da Luz.

CAPÍTULO QUINZE - DUOS

Passado pouco tempo Alberto começou a sentir os mesmos vómitos matinais que já sofrera pela gravidez de Rosmaninho e Maria da Luz estava mais feliz que nunca. Sentía-se calma e sabía como percorrer cada etapa que os meses lhe trazíam. O único contratempo era o apetite devorador que tinha constantemente, nunca saciado e sempre por coisas fora de época.
- Alberto...
- Hum...
- Alberto, acorda. Estou com desejos de broa... ouviste?
- O quê?
- Broa, apetece-me broa. Se não como broa acho que morro...
- Dorme Maria da Luz! Se adormeceres isso passa!
- Não passa nada. Quero broa...
- Broa?! A uma hora destas! Onde vou eu desencantar isso?
- Não sei... mas se não comer broa agora, o bébé vai nascer aguado. Foi a tua mãe que me disse. Se não fizermos a vontade a estes desejos, o bébé vai...
- Já percebi! Vou ver o que se arranja.
Alberto levantou-se embrulhado no roupão e foi bater à porta da governanta. Esta quando o viu ficou radiante e escancarou a entrada fazendo um jeito para ele entrar.
- D.Lídia não é preciso entrar, é coisa rápida... precisava que fosse à cozinha e visse se temos broa cá em casa.
Mas a governanta não o ouvía, abriu a camisa de dormir e mostrou-lhe o seios, agarrando-os por baixo, sacudindo-os, apertando-os, rindo sem barulho.
Alberto ficou atónito.
Deu meia volta e voltou ao quarto.
Maria da Luz dormía e ele aconchegou-se às costas dela, os braços a rodearem a barriga muito bojuda. Cerrou os olhos, a visão do peito da governanta não lhe saía da cabeça, sentiu repulsa, pensou que no dia seguinte a havería de despedir.
Mas no outro dia tiveram de chamar a parteira que Maria da Luz estava com muitas dores. E esta não conseguiu dar conta do recado, temendo o pior. Seguiu para o Hospital e após cesariana, nascíam mais dois rapazes antes do tempo esperado.

CAPÍTULO CATORZE - NOVIDADES

- Podemos conversar? Tenho uma coisa para te dizer...
- Agora não é boa altura Maria da Luz. Ao jantar conversamos.
- Mas é importante!
- Que o seja! Não perderá a importância até ao jantar, então?!
- Vais ser pai outra vez.
Alberto ficou estático, os papéis nas mãos, o olhar parado no dela.
- Era só isto que te quería dizer.
Maria da Luz saíu, encostou a porta do escritório devagarinho, cruzou-se com D.Lídia e lançou-lhe um olhar de superioridade. D. Lídia submeteu-se à sua submissão mas mal a senhora da casa saíu de sua vista, imitou uns chifres na ponta dos dedos minimo e indicador e entrou silenciosa no cómodo onde estava o Doutor.
- Muitos parabéns Doutor! O menino Alberto já precisava de companhia!
- Obrigado D.Lídia.
- Com a graça de Deus há-de ser um rapaz outra vez!
- Veremos. Desde que venha são...
- Calculo que deverei tomar algumas providências... Arranjar uma ama de leite, que do menino Alberto a Senhora não foi capaz... E agora com tempo...
- É um pouco cedo para isso!
- Eu sei Doutor, mas com tempo arranjaríamos uma mulher como deve ser, uma boa ama de leite...
- D.Lídia, quer alguma coisa daqui? Preciso de trabalhar e a Senhora está a incomodar-me!
A governanta calou-se, deixou de sorrir e saíu.
Ao fechar a porta do escritório, silenciosa, levou o lenço bordado à boca e limpou o fio de sangue que fizera ao morder os lábios.

CAPÍTULO TREZE - O ESCALDÃO

Apesar do chapéu de abas largas, os óculos escuros, a bata leve florida e do recolhimento na barraquinha, o vento de Cascais não teve piedade da pele de Maria da Luz. Muito branca e sedenta do sol de um dia de praia, alongara os braços e as pernas aos favores do astro-rei e este tomou-a num escaldão avermelhado que no final do dia a encheu de calores e frios.
Marcada a branco pela cobertura das roupas e a carmim pela nudez desabitual, viu-se ao espelho desolada e febril, sem força, o corpo a pedir cama.
Alberto olhou-a. Havía muito tempo que não vía a mulher sem roupa, toda exibida na luz artificial, as formas definidas na cintura e nas ancas. Sentiu-lhe desejo, passeou-lhe a palma da mão nas costas, escorregou-a até às nadegas e depois agachado deslizou um dedo pela curva da perna queimada, deixando um traço branco na pele incendiada.
Maria da Luz fechou os olhos, sentiu uma tremura, os seios a enrijarem. Quando olhou de novo viu Alberto por trás de si reflectido no espelho, apetecía-lhe agarrá-lo, pedir-lhe coisas que nem mesmo ela sabía. Sentiu vergonha, ficou imóvel.
Ele ergueu-a no colo e deitou-a na cama, ficou a admirá-la, ela tapou a púbis com ambas as mãos.
Alberto afastou-lhe as pernas, encostou o rosto, cheirava a mar, mordeu-a e depois numa pressa baixou as calças e entrou nela num ritmo de frenesim, Maria da luz olhava o tecto, sentiu um calor diferente do escaldão, tomava-lhe a barriga, o peito, o pescoço, a ponta das orelhas, tudo nela parecía ter vida pela primeira vez.
Ajeitou-se às costas dele, pernas num abraço, puxou-lhe as mãos para os seios e numa concha apertou-os, Alberto olhou-a nos olhos fechados, aliviou a velocidade e abocanhou-a nos mamilos.
Maria da Luz suspirou fundo, um suspiro longo que parecía não ter fim.
Alberto cerrou os olhos, soltou um som cavo e deixou-se ficar por cima dela.
D.Lídia veio bater à porta do quarto.
- Doutor, está aqui um recado para o senhor.

CAPÍTULO DOZE - FÉRIAS

Em Agosto o calor chegou no sufocar de uns quantos incêndios, tempo quente e dificil de respirar.
Alberto desde há uns meses tinha abrandado a correría e a pasta preta poucas vezes saía do cofre. Ficava pelo escritório onde se deleitava no cachimbo aromatizado a chocolate a atender telefonemas onde não falava; depois tomava algumas notas, chamava o motorista e de porta fechada entregava-lhe uns quantos envelopes que este levava apertado nas mãos enluvadas.
Maria da Luz no jardim via-o partir, um olho no bordado de bastidor circular o outro no traseiro fardado, nunca descurando a atenção de Rosmaninho que se enfeitiçava por um ou outro insecto.
Numa tarde abafada, entre copos de limonada e capilé, falou a Alberto em fazerem férias.
- Podíamos ir à Nazaré, Alberto... ou à Figueira... tenho saudades de ver o mar.
- Ver o mar?
- Sim, o mar, molhar os pés, mostrá-lo ao Rosmaninho, dar-lho a provar para ele saber que é salgado...
- Que disparate Maria da Luz! O miúdo é uma criança, sabe lá o que é isso! Dar a provar... só tu para teres uma saída dessas.
- Que tem? Porque és sempre tão sério, Alberto? Tu nunca pensas nestas coisas? Na grandeza do nosso mar, porque é salgado como as lágrimas, essas coisas tão bonitas que parecem nunca ter resposta...
- Uma tontice! E alguém tem que ter a cabeça no sitio, Maria da Luz! Sendo eu o chefe de familia achas que me posso pôr a pensar nessas inutilidades? Tenho mais em que pensar, se tu soubesses!
- E porque não me dizes?
Alberto olhou-a sério. Por pouco quase duvidou que ela não soubesse mesmo de tudo o que se passava ou pelo menos, de algumas aflições que lhe tinham surgido ao caminho. Depois do episódio de Beja tinha ficado num estado de alerta, desconfiava até de quem o rodeava e sobretudo receava caír no desagrado do chefe do governo. Ficar por casa até esquecerem o seu rosto tinha sido a estratégia escolhida mas sentía-se quase aprisionado na sua própria condição.
- Que me dizes a Cascais?
- Cascais?
- Sim, passarmos um dia na praia, levarmos o farnel, alugarmos uma barraquinha e mostrar ao Alberto esse mar de que tanto falas. O mar salgado, como tu dizes.

CAPÍTULO ONZE - AO GATO E AO RATO

Ao fim de duas semanas Alberto entrou em casa, dirigiu-se ao escritório, abriu o cofre e guardou a pasta preta de pele. Depois discou um número de telefone e ficou em silêncio, de vez em quando fechava os olhos, rabiscou a lápis um barco, juntou-lhe uma vela de riscas, por baixo um ondulado a fazer de mar.
D.Lídia que passava achou estranho a porta aberta. Empurrou-a cautelosamente.
- Ah! Doutor! Já cá está entre nós, seja louvado o Senhor!
Alberto ergueu a palma como a pedir-lhe silêncio e ela levou a mão à boca encolhendo-se num acto de contrição pela intromissão ruidosa. Ficou defronte à secretária, ajeitou a pregadeira em forma de cruz, limpou os óculos esverdeados e como mais nada tinha que se ocupar serviu um copo de água do jarro que sempre estava cheio na mesa de apoio aos sofás de couro.
- Muito bem... não, é só o que está no relatório, o original seguiu para o Dr. Salazar... não, apenas isso, apenas que temos que nos preparar... muito bem, concerteza, eu sei, eu sei!
Alberto desligou.
- E a senhora D. Maria da Luz?
- Está com o menino Alberto. Oh Doutor senti muito a sua falta! Quer dizer sentimos todos a sua falta, a casa pareceu vazía!
- Vá chamar a Senhora, D.Lídia.
A governanta rodou nos calcanhares e vincou-os no chão enquanto se afastava.
Pouco depois Maria da Luz apareceu com Rosmaninho ao colo, sorriso rasgado, abraçou-o com um só braço, tentou apertá-lo junto a si e ao filho, chegar-lhe aos lábios mas Alberto beijou-a na testa e tirou-lhe o filho abanando-o.
- Estás crescido rapaz! Que cresceste enquanto tive fora! Oh Maria da Luz este rapaz está um homem!
- E tu Alberto? Tu estás bem? Por amor de Deus, não voltes a ir-te desta maneira que me deu um aperto! Sabes lá tu! E o Brasil? Viste coisas bonitas por lá? Dizem que tem uma praia linda... um dia podíamos ir todos, que me dizes?
- Ai, mulher, eu fui em serviço, tive lá tempo para essas tontices de que falas!
Maria da Luz imitou um beicinho mas logo se riu.
- E então trataste de tudo? Que coisa foste tu lá fazer, Alberto?
- Coisas que não são de tua conta. Mas posso dizer-te que foi uma correría e afinal para nada!
- Para nada? E ficaste lá tanto tempo?
- O tempo que foi preciso. Mas esse patife não me escapa. Não foi lá há-de ser aqui.
E pouco tempo depois, o quartel de Beja era tomado de assalto.
Para surpresa de todos.

CAPÍTULO DEZ - O TELEGRAMA

Passados dois dias Maria da Luz recebeu a visita de um dos homens de fato negro, educado, deschapelou-se de imediato mal apareceu na sala.
O coração disparou-se-lhe, temeu por uma má noticia que Alberto fora-se e mais nada soubera dele. Apertou as mãos uma na outra e esperou pelo embate.
O homem esticou-lhe um telegrama, já de selo rasgado, o papel fino um pouco amachucado e morno, vindo das mãos do homem de fato negro. Ela recebeu-o e leu.
- Graças a Deus!
- Vim só para lhe entregar o telegrama.
- Obrigado. Mas não entendo porque não veio ele directamente para casa, para mim... porque razão Alberto enviou um telegrama a dar noticias para o serviço? Não entendo...
- Minha Senhora, o recado está entregue. Tenha um bom dia.
- Espere! Vejo que o telegrama tem data de ontem e só hoje mo entrega? Porquê? E afinal quem é o senhor? Colega do Alberto?
- Bom dia, minha Senhora!
O homem voltou a pôr o chapéu na cabeça, ligeiramente tombado sobre o rosto e dirigiu-se para a porta de saída, não esperando que Maria da Luz o acompanhasse. D.Lídia abriu-lhe a porta e com um gesto silencioso de cabeça despediu-se do homem. Depois juntou-se a Maria da Luz.
- Más noticias minha Senhora?
- Ora, vá à merda!
Maria da Luz disparou directa ao quarto, desembrulhou o telegrama e tentou descobrir alguma mensagem que não tivesse lido à primeira, algum segredo que ele lhe pudesse enviar sem mais ninguém saber.
Mas não, o telegrama apenas tinha escrito "Cheguei bem Stop Alberto".
Ajoelhou-se e rezou a NªSrª de Fátima.
Depois abriu as portadas envidraçadas e ficou a ver a chuva que teimava em caír em fortes bátegas. Fumou um cigarro.

CAPÍTULO NOVE - A VIAGEM

- Só roupas leves, por lá faz muito calor.
- Mas que viagem é esta, Alberto? E Brasil? Bem que eu podía ir contigo!
- Nem pensar! Isto é trabalho! Pensas que vou a passeio?! E tu tens o teu filho para te ocupares!
- Ora, o Rosmaninho ficaría bem entregue com a tua mãe...
- Que mania essa de chamarem esse nome horrendo ao Alberto!
- Que tem?! Nada do que digo ou faça te agrada!
- Não vais começar Maria da Luz! E despacha-te, o avião não espera por mim.
Maria da Luz fechou a mala, os dedos finos de volta das molas metálicas. Levou as duas mãos ao rosto num sinal de desconsolo.
- Quando voltas?
- Ainda não sei, mas não será por muito tempo. Eu dou noticias. Chama o motorista para levar a mala.
Ela afastou-se aconchegando o roupão junto ao pescoço.
Chovía tremendamente e aquele inicio de Março estava tão frio como o Dezembro o havía sido.
O motorista descobriu-se perante a presença de Maria da Luz, o boné atrás das costas, a outra mão na pega da mala. Alberto deu dois beijos no rosto de Maria da Luz, ela esperou por uma abraço, um beijo nos lábios, uma confissão de saudade que não chegou.
- Vai com Deus! E dá noticias! Não me deixes ralada...
- Fica descansada. Vai para dentro, chove muito e faz frio. Até à volta.
Maria da Luz ficou no alpendre a ver o carro ganhar distância, baforadas brancas numa madrugada escura. Sentiu um aperto no coração, uma solidão imensa apanhou-lhe o corpo e estremeceu. Nunca se vira sózinha desta forma, Alberto viajava com alguma frequência mas o mais longe que tinha ido tinha sido à vizinha Espanha. Agora cruzava o oceano, outro continente, outra noite, muito frio.
Fechou a porta e deu de caras com D.Lídia.
Passou por ela como um fantasma e seguiu para o quarto de Rosmaninho onde ficou a vê-lo dormir até o dia raiar, escuro, cheio de nuvens no céu e muita água a caír.

CAPÍTULO OITO - PROBLEMAS

- D.Lídia, mande preparar uma ceia e diga à criadagem para se recolher, depois também pode ir.
Ah! E peça à Senhora para vir aqui.
A governanta saíu do escritório e fechou a porta devagar, deixando os três homens de fato negro à roda de papéis, o Dr. de mãos nos bolsos e semblante carregado.
Maria da Luz bateu na porta ao de leve e entrou de seguida. Apercebeu-se que alguma coisa não ía bem, meneou a cabeça num jeito polido para as visitas e aproximou-se do marido.
- É bem provável que tenha que viajar... nada certo agora, mas prepara-te.
- Viajar? Mas para onde? E agora, a esta hora da noite?
- Ainda não sei Maria da Luz, só tens que estar preparada. Deita-te, não saias do quarto. Mal possa falo contigo.
Maria da Luz fez menção de beijar o marido na face mas este afastou-se de imediato e debruçou-se sobre a papelada espalhada na secretária.
Saíu, um pouco envergonhada pelo gesto frio, fechou a porta devagar e deixou-se ficar encostada a tentar ouvir o que se passava. Mas não entendía nada, escutava palavras soltas como Stª Maria, General, Brasil e nada daquilo fazía sentido para si.
No fundo desconhecía inteiramente o que Alberto fazía para além de estar no governo e as visitas dos homens de gravata negra eram já um hábito a que se acostumara desde o principio do casamento. No inicio ainda perguntara quem eram, se amigos se colegas do serviço, mas Alberto apenas lhe respondera secamente que não eram contas do seu rosário e não quisesse saber o que não lhe competía.
Não conseguía perceber o diálogo e resolveu recolher-se. D.Lídia assustou-a, por trás de si, imóvel como uma estátua, tabuleiro na mão, levou a mão ao peito, ao pescoço sentindo a veia dilatada.
- Que coisa, mulher! Não me faça isso! Vá deitar-se, o Dr. não precisa mais de si!
- Boa noite, minha Senhora. Vou apenas levar a ceia ao Dr.
Cada uma seguiu o seu caminho.
Alberto sentado, empilhava papéis brancos e amarelos.
- Esse Delgado está a precisar de uma lição. Esquece a mão que o alimentou, é cão que não conhece o dono!
- Pois sim, mas a Embaixada brasileira já disse que lhe dava asilo. Não podemos despoletar uma guerra diplomática, Dr.!
- E o nosso chefe o que diz?
- Há que cortar o mal pela raíz, o Dr.Salazar não lhe perdoa. E faz ele muito bem! Mas agora com ele lá para o Brasil será dificil fazer alguma coisa sem chamar a atenção.
- Eu sei, está tudo de olho, não é?! Depois da história do Sta. Maria e daqueles dois jornalistas terem andado por aí a publicar tudo temos de ser cautelosos.
- Muito, muito mesmo Dr. . Por isso é tão importante que vá. O nosso chefe foi claro: ver para saber.
- E eu vou! Pela minha pátria faço tudo.

CAPÍTULO SETE - OS PRIMEIROS PASSOS

- Anda, anda... vá, vá, anda à mamã...
E Rosmaninho, trémulo, de pernita no ar, abanando, e mostrando alguns dentes no sorriso, esticava os braços em direcção a Maria da Luz. Depois caía de traseiro, os olhos negros muito abertos no susto de não alcançar as mãos que a sua mãe lhe estendía. Batía palminhas na imitação dos grandes, mastigava o dedo e babava-se muito. Maria da Luz tomava-o ao colo e girava com ele pela casa como se fossem um par, depois batía à porta do escritório e entrava sem esperar que Alberto lhe dissesse que podía, baixava a testa do menino até à altura da boca dele e depois recuva numa brincadeira que punha Rosmaninho a soltar gritinhos de euforia e gargalhadas nos pais.
Por vezes Maria da Luz desapertava um botão da blusa propositadamente e chegava-se mais ao rosto do marido, deixando que ele sentisse o perfume dela ou mirasse a curva que se desenhava por baixo da roupa. Ele nada dizia. Mantinha-se de olhos postos no filho e ignorava a intenção da mulher..
Um dia ela mais afoita, descobriu mesmo a carne e roçou-lhe o bico do peito pela face. Ele ergueu-se da sua cadeira e assentou-lhe uma bofetada.
- Componha-se! Você não é uma rameira!
Maria da Luz levou a mão ao rosto escaldado, largou o filho no tapete e escondeu-se no quarto.
Chorou durante horas, os olhos inchados, a boca amarga. Rezou, pediu perdão de joelhos e prometeu a Nª Srª de Fátima que se lhe iluminasse o caminho que se sentía perdida, voltaría a ser uma boa esposa.
Não se juntou à mesa do jantar, adormeceu profundamente, esgotada numa solidão dentro de si.
Só acordou com os safanões do marido, as mãos a afastarem-lhe a roupa à bruta, os dentes a marcarem-lhe os ombros e o peito e depois uma dor funda, quase na alma quando ele se apoderou do seu sexo. Alberto beijou-a nos lábios então.
- Não voltes a fechar a porta à chave. A partir de hoje durmo aqui outra vez.

CAPÍTULO SEIS - ENTRADAS E SAÍDAS

Tiveram um Inverno rigoroso, farto de frio e chuvas, muitas inundações, muitas ausências de Alberto que só aparecía à mesa do pequeno-almoço . Mostrava-se mais preocupado para além do normal e quando vieram instalar o telefone no escritório passou a fazer daquele cómodo lugar de refeição também, quando ficava em casa a trabalhar.
Vinham muitos homens visitá-lo, por vezes acompanhados de uma ou outra secretária, deselegantes, feias mesmo, mulheres atacarradas nos sapatos rasos. Maria da Luz vía passá-las e por vezes quase desejava ser uma delas, andar por aí, saír, ouvir falar. Nunca lhes dirigiu a palavra tentava não se aproximar da porta do escritório conforme as ordens do marido. Nessas alturas até a governanta estava proibida de entrar.
Em Janeiro e logo depois do primeiro aniversário de Rosmaninho, Alberto passou a andar de carro com motorista. Ficava encostado ao carro, à espera, numa prontidão servil de abrir a porta ao Doutor e arrancar silencioso. Maria da Luz espreitava-o entre os cortinados, observava-lhe as mãos, a farda negra e o boné de pala dura. De um dia para o outro deixou a farda, paramentara-se de fato negro e camisa branca como tantos que entravam na sua casa, o chapéu de feltro com faixa preta a altear-lhe o tamanho.
No mês seguinte dispensaram os serviços da ama de leite que chorosa, abraçou muito Rosmaninho e lhe chamou meu menino. Foi-se com o filho e nunca mais souberam dela, o motorista levou-a à estação de Sta Apolónia desaparecendo como o fumo libertado pelo apito da partida.
Foi nessa altura que D.Lídia teve uma gripe que a atirou à cama. Chamaram o médico, delirava, chamava pelo Doutor, tentava despir-se.
Maria da Luz nessa noite não fechou a porta do seu quarto.

CAPÍTULO CINCO - O JANTAR

Maria da Luz quis ocupar-se pessoalmente da organização da mesa e da distribuição dos lugares: intercalar os convivas obedecía a que se conhecesse a sua posição social e ainda dispôr o mais falador junto de um outro mais calado, cavalheiro e senhora, não descuidando as distâncias entre esposos.
Mas quando chegou a altura de escolher o menu Maria da Luz hesitou entre um cardápio francês e as recomendações do marido para a austeridade que o seu cargo governamental impunha e o chefe do conselho exemplificava nas suas parcas refeições. Ficou nervosa, com medo e D.Lídia acabou por ser quem efectivamente decidiu a ementa.
O jantar correu calmo e sem sobressaltos, após o café os homens recolheram-se ao escritório e de porta fechada só se sentíam algumas gargalhadas abafadas pelo peso das tapeçarias.
As mulheres ficaram na sala de estar a discutir pontos de crochet e as escolas onde haveríam de matricular os filhos. Maria da Luz recebeu muitos ensinamentos, muitos conselhos, enfastiou-se, apetecía-lhe um cigarro mas o odor não permitido apenas a levou a descascar o verniz muito vermelho e a esborratar o baton.
De vez em quando a governanta surgía, perguntava se queríam alguma coisa. Depois seguía até ao escritório, batía ao de leve na porta encerada, entrava, deambulava por entre as pernas traçadas dos homens, cuidava dos cinzeiros, arejava as portadas envidraçadas e servía mais um conhaque a um e outro.
O serão passou agradável, partiram, Maria da Luz escondeu-se no quarto e rodou a chave para não ser incomodada no seu cigarro, Alberto voltou ao escritório e desejou boa noite a D.Lídia.
Já com a casa apagada fez em bicos dos pés o caminho até ao quarto da ama, entrou devagar e deitou-lhe as mãos aos seios grandes. A ama estremunhada soergueu-se num cotovelo.
- Ah, Doutor, é tarde...
- Shhhh... deixa-te estar...
Levantou-lhe a camisa de noite fechada até ao pescoço, tacteou-lhe no escuro os mamilos entre os dedos e depois abocanhou-os, chupando sofrego e gemendo baixinho. Desapertou-se e procurou a boca da ama de leite, empurrando-lhe a cabeça a intervalos regulares contra o seu corpo.
D. Lídia, agachada espreitava pela fechadura e quando ouviu um som cavo entendeu que o Doutor Alberto tinha atingido o que quería. Saíu em bicos de pés e a sorrir.

CAPÍTULO QUATRO - ORDEM

- Eu não preciso dos serviços dela. Estou bem, capaz, eu tomo conta da casa, como sempre o fiz.
- Como sempre?!
- Sim, como sempre. Passei um tempo indisposta mas já passou.
- Não me parece. Além disso ela tem-se mostrado de uma competência extrema, nada falta, nada falha, está sempre atenta e até me lembra da minha pasta.
- Claro, outra coisa não sería de esperar...
- Que quer isso dizer?
- Ora, tu sabes bem!
- Não sei não.
- Sabes sim. Mas não é isso que está em causa. Não precisamos mais dela, vou despedi-la.
- De forma alguma! Ela fica, isso é ponto assente!
- Mas eu não gosto dela!
- Nem tens que gostar! Tu és a senhora da casa e D.Lídia a governanta, tu dás as ordens ela manda executar. É assim que funciona, estamos entendidos?!
- Ela detesta-me, Alberto!!!
- Deixa-te disso... e agora tenho que trabalhar... por favor...
- Tu não estás a perceber! Ela quer-te, por isso me detesta! Não a quero cá em casa, faz-me mal e se tu não a mandares embora mando eu!
- Esta conversa chegou ao fim Maria da Luz. Sai, preciso de sossego!
- Eu saio mas tens que me prometer...
- Prometer?! O quê? Quando voltas a abrir a porta do nosso quarto? Ou terei que te envergonhar e lembrar-te as obrigações de esposa? E as da dona desta casa? Mal ligas para o teu filho e agora queres que corra com a governanta! E acabou! Sai! Sai!
- É esta a tua última palavra? Magoas-me, ofendes-me...
- É uma ordem. Assunto encerrado.

CAPÍTULO TRÊS - O RESGUARDO

Maria da Luz entrou num resguardo prolongado, perdida no quarto que afastou Alberto da sua cama.
Rosmaninho foi entregue aos cuidados de uma ama de leite, mulher forte e rosada que trouxeram das Beiras e da casa as tarefas foram entregues a D.Lídia, uma governanta que se vestía de cinzento todos os dias do ano e usava uma pregadeira em forma de cruz, olhar penetrante, boca fina e óculos esverdeados.
Alberto cada vez passava mais tempo fora, as exigências do partido e o cargo recém promovido no governo obrigavam-no a serões frequentes, esquecido da casa e do filho que tanto quisera. Chegava pelo romper do dia com cheiro requentado de cigarros e o semblante triste, cansado e mudo, a pasta preta de pele muito encostada no sovaco que religiosamente guardava no cofre do escritório. Depois seguia para os cómodos destinados a visitas, deitava-se e passadas poucas horas aparecía lavado e de barba desfeita para o pequeno-almoço familiar na companhia de seus pais.
A ama trazía-lhe Rosmaninho, mostrava-o como estava gordo e bem tratado, Alberto sorría, passava-lhe um dedo ao de leve na bochecha macia e procurava a mão pequenina para esconder no aperto o dedo forte. Depois perdía-se nos seios fartos da ama de leite, perguntava-lhe pelo seu filho um pouco mais velho que Rosmaninho e a ama respondía estridente e com som de sh que com a graça de Deus tudo ía.
E Alberto ía, sempre, antes de voltar aos afazeres, espreitar Maria da Luz, encostar-lhe os lábios na testa, ajeitar-lhe a dobra do lençol, passar-lhe a mão no cabelo ondulado.
Maria da Luz dormía.
Mas quando ele saía e fechava a porta de mansinho ela abría muito os olhos e tentava chorar.
Os meses passaram e no inicio do Verão, Maria da Luz levantou-se e tomou assento à mesa do pequeno-almoço.

CAPÍTULO DOIS - PLANTAÇÕES E ROSMANINHO

Só em meados de Setembro se mudaram para a casa. Já toda apetrechada com os móveis mandados fazer sob encomenda no Norte mas com aquele cheiro de frio e humidade de quem nunca tinha sido habitada, a tinta ainda reluzente sem o calor das vidas a fazerem uso, ecos de paredes que não estão habituadas a partilhar.
Maria da Luz fizera finca-pé no jardim da entrada, nada de muito sério, mas pelo menos uns pés de roseira que perfumassem quando floridas num cumprimento de quem lhes passasse à porta e alguns canteiros de amores-perfeitos e ervilhas-de-cheiro. Sem isso não aceitava mudar-se.
O marido acedeu. E ainda mais quando soube que ela estava grávida. Desvelou-se em atenções e presentes, inquietações e vómitos, que estes chegaram-lhe mas a Maria da Luz nada.
Entraram na casa já ela barriguda, o padre de benzedura na mão, alguns amigos, uns quantos politicos do partido de fato completo e gravata preta.
Fez-se a festa de inauguração, baptizou-se a casa de AM: Alberto e Maria.
Em Janeiro nasceu o terceiro Alberto, do pai e do avô carregou o nome na cruz desenhada pela parteira à nascença dolorosa depois de vinte horas em trabalhos na cama do casal. Parto perigoso, a criança trazía um colar à volta do pescoço feito do cordão umbilical e que o deixara roxo nos primeiros minutos de vida.
A avó ao vê-lo sorriu e disse que havía de vingar, limpou-lhe o sangue e a massa branca, enfiou-lhe o indicador na boca e soprou-lhe às narinas.
- Vens roxinho como um rosmaninho! - exclamou.
Assentou-lhe duas palmadas com força nas nádegas e Alberto terceiro vagiu exibindo as gengivas.
Maria da Luz debilitada, tentou recostar-se e estendeu os braços para a sua cria.
Mas a empregada, de farda branca e negra esticou-lhe uma bandeja com um cálice de vinho do Porto.
O nome de rosmaninho ficou.

CAPÍTULO UM - A CASA DE PAPEL

Desenrolou os canudos de papel. O vento atirava-lhe as abas do casaco para trás e dificultava-lhe o assentar das folhas encaracoladas, chamou o mestre, a quatro mãos esticaram os planos pousando umas pedras nos extremos. Que faltava? Pouca coisa, agora era mais retirar entulho e algumas limpezas do resto dos materiais e depois podía fazer a mudança.
- Estas obras já se atrasaram mais de seis meses... não quero adiar mais nada, estamos entendidos? - e puxou o chapéu de feltro sobre a vista sem olhar a cara do mestre.
- Claro, Doutor! É como lhe disse, faltam só os homens levarem os restos. Com licença.
Ele ficou a ver o mestre de obras afastar-se, ligeiramente manco, uma queda de um telhado deixara-lhe a anca avariada. Depois olhou a casa, rosada, uma moldura salmão em redor das portadas de vidro e dos pilares do alpendre. Suspirou, sentiu-se subitamente cansado e infeliz. Durante anos sonhara com aquela casa, desenhara-a, aprimorara cada detalhe na companhia de Maria da Luz.
Finalmente a casa tinha-se transformado de papel em pedra, de uma fantasia em paredes sólidas e uma porta maciça de carvalho franqueava-lhe a entrada para uma luta conseguida.